Quem quer que tenha lido bons livros sobre filosofia medieval, ou bons livros sobre história da educação, certamente já deve ter lido o nome de Hugo de Sao Vitor (1096-1141) entre um dos grandes - ou talvez até mesmo um dos maiores - educadores que o período medieval nos legou. E entre suas obras mais conhecidas, se destacam seu opúsculo "Sobre o Modo de Ler e Meditar" e o "Didascálicon - A Arte de Ler"; assim sendo, tentaremos neste post trazer algumas das principais recomendações do autor aos estudantes, considerando alguns métodos contemporâneos que o complementam de certa forma.
Para os leitores do mestre do mosteiro de São Vitor, algo que deve ter impressionado de inicio em sua obra é a brevidade de seus escritos. Recordo-me que quando tive em mãos o opúsculo "Sobre o Modo de Ler e Meditar" pela primeira vez, tive uma certa decepção ao ver que uma obra tão famosa e citada possuía apenas 8 páginas - o que me levou a perguntar-me se aquilo não era apenas um trecho de uma obra maior - e que ainda assim, eram ainda mais breves os capítulos e ao termino de cada um, sentia uma vontade de mais explicações, mais longas, mais elegantes estilisticamente, etc. Quando tive em mãos o "Didascálicon", fiquei animado por ser já um tratado que me parecia mais extenso, com vários livros dentro do tratado, com vários capítulos dentro de cada livro, e tudo o mais de me fez crer que seria a tão sonhada expansão do Opúsculo. Novamente, o que vi foram inúmeros capítulos de extensão de meia página à duas no máximo, que se por um lado ainda me deixava com uma certa "sede" de maiores explicações, trouxe ensinamentos que todo estudante poderia aproveitar. E este é o objetivo deste post.
Para aquele que busca se aperfeiçoar no estudo da sabedoria, é necessário que saiba três preceitos preliminares, e como "um pequeno erro no inicio leva a um grande erro no fim", é preciso bem considerar previamente (i) o que devemos ler, (ii) a ordem com que devemos ler e (iii) como devemos ler. Em primeiro lugar, a matéria do estudo, em segundo a hierarquia entre essas matérias, distinguindo quais ciências pressupõe outras, quais são anteriores ou posteriores, quais são as partes subjetivas e potenciais de cada uma e de que forma estudar cada uma dessas ciências, distinguindo metodologias de investigação de acordo com a natureza de cada objeto de estudo e com subordinação dessas ciências.
Poderíamos até mesmo adicionar - por nossa conta, não pelo texto explícito do mestre - um quarto conselho prévio, de natureza moral para o aprendiz. Primeiramente, ao considerar a condição humana, decaída, o amante da sabedoria busca com o auxilio divino reparar a semelhança divina (uma vez que somos Imago Dei); e dois são os exercícios que nos ajudam a este fim: (a) a investigação da verdade e (b) a prática das virtudes. E percebam que são duas dimensões que estão intimamente unidas, inseparáveis, uma vez que não pode ser verdadeiro amante da sabedoria aquele que contra esta mesma sabedoria pratica imoralidades, contra a reta razão e em última análise contra Aquele que é a Sabedoria mesma; por outro lado, só pratica as virtudes aquele que é de certo modo sábio, e tem sua alegria no agir conforme a razão, e que é - para usar termos mais precisos - prudente (virtude intelectual). Dessa forma, agir conforme a razão pressupõe uma certa virtude intelectual - prudencia - , que se dirige para a reta decisão segundo uma reta apreensão da realidade, e a reta apreensão da realidade por aquele que investiga a verdade, o leva a agir conforme a verdade apreendida, sendo sábio em suas considerações e decisões. É intima a relação entre a vida moral e intelectual, indistintas. E é precisamente esta verdade que o Pe. Antonin Sertillanges expressa em seu clássico A Vida Intelectual (É Realizações, 2010)
“A virtude não é a saúde da alma? E quem ousará dizer que a saúde não interfere em nada na visão? Perguntem ao oculista. Um clínico inteligente não se limita a medir a curvatura do cristalino e a escolher armações de óculos; (…)ele se preocupa com seu estado geral,com sua dentição ,com seu ritmo de vida, com suas vísceras. (…)O segundo pressuposto moral que poderíamos deduzir da obra de Hugo de São Vitor, é uma atitude profundamente apaixonada pela sabedoria e uma humildade realista de compreender que ela nunca será nesta vida plenamente alcançada. Saber que " a verdade total esconde-se de nós, porque quanto mais nosso espírito arda de amor, e quanto mais profunda se torne a busca pela verdade, mais difícil sua compreensão plena" (Didascálicon), e nisto consiste uma certa atitude tanto do filósofo quanto do teólogo - que em seu tempo não se distinguiam -, porque o coração destes tanto mais se inflama e quer buscar a Verdade amada quanto mais lhe é difícil compreender.
Como farão para pensar adequadamente com uma alma doente,com um coração triturado por vícios,dilacerado pelas paixões, desorientado por amores violentos ou culpados? Há um estado de lucidez e um estado de cegueira da alma,dizia Gratry,um estado são e,consequentemente, sensato, e um estado insensato. ‘O exercício das virtudes morais’,nos diz por sua vez Santo Tomás de Aquino, ‘virtudes pelas quais são refreadas as paixões ,importa sobremaneira à aquisição da ciência’ . (SERTILLANGES, 2010, p. 33)
As pequenas verdades investigadas e conhecidas inflamam o coração para que saiba que ainda muito resta a conhecer, e mesmo este muito não será plenamente conhecido. E aqui, o perfeito filósofo - que é, como sempre se repete, um teófilo, alguém que ama a Deus - chega a um ponto central, que foi perfeitamente percebido por Santo Tomás de Aquino em um dos pontos que podemos dizer "quase místico" de sua obra, no qual explica sobre a hierarquia entre intelecto e vontade: quando o objeto do conhecimento é muito nobre, mais vale ama-lo do que conhecê-lo, mas quando o objeto não é tão nobre, mais vale conhecê-lo do que ama-lo. O Aquinate diz:
Quando a coisa na qual está o bem é mais nobre que a própria alma em que se encontra a razão dessa coisa então relativamente a essa coisa, a vontade é superior ao intelecto. Quando, porém, a coisa na qual está o bem é inferior à alma, então relativamente, também, a essa coisa, o intelecto é superior à vontade. Por isso, é melhor amar a Deus do que conhecê-Lo, e inversamente vale mais conhecer as coisas materiais do que ama-las." (Summa Theol. I, Q. 83, art. 3, respondeo)Dessa forma, quando se chega ao ponto em que vê a vastidão da verdade que supera nosso entendimento, a atitude devida é o amor. E mais ainda, quando se percebe que há uma Verdade Encarnada, Pessoa, pela qual todas as coisas foram feitas (São João, capitulo 1), é mais nobre que nos prostremos em adoração e amor do que busquemos disseca-la tal como um sapo de laboratório. Esta é a atitude do sábio, que vê no amor a resposta adequada a esta Verdade que supera infinitamente sua capacidade de entendimento, mas que ao mesmo tempo, pela graça batismal habita no mais íntimo do seu íntimo (intimior intimo meo).
Essa atitude inicial do filósofo perante à realidade é de certa forma uma atitude religiosa, uma atitude que passando do conhecimento das realidades naturais, busca alcançar as sobrenaturais, buscando as verdades que passam, alcançar as que não passam, compreendendo com S. Tomás que o conhecimento é causa do amor e que à Verdade que nos supera infinitamente a atitude adequada é o amor e o temor de Deus, que princípio da Sabedoria (Prov. 9,10).
Passando desses dois pressupostos morais ao estudo da filosofia - que não estão expostos desta forma em seus escritos, passemos ao estudo das diversas ciências segundo os 3 preceitos prévios para a leitura (os preceitos morais não estão incluídos textualmente como anteriores, mas o que fizemos foi uma reconstrução a partir de outras partes de seus escritos). E como precisamos em primeiro considerar os objetos do estudo, i.e. o que iremos estudar, é necessário antes distinguir as ciências. A divisão inicial seria quadripartite, sendo a ciencia (filosofia) dividida em (1) Teórica, (2) Prática, (3) Mecânica e (4) Lógica.
A ordem do estudo dessas ciências, tem por inicio a (4) Lógica, que segundo o autor, é "a última no tempo, mas a primeira na ordem do estudo". Para os acostumados com o que chamamos de Educação Clássica ou Liberal que a Lógica seja a primeira na fila não é estranho, e de fato, o programa de estudos das 7 Artes Liberais inicia-se com o Trivium, que prepara a inteligência do estudante para os estudos mais avançados. A Lógica por sua vez possui 3 partes: (a) Gramática, (b) Dialética e (c) Retórica; esta parte inicial é pressuposta e sustenta os estudos posteriores. Por acaso pode o estudante compreender a Teologia, Filosofia Natural, a Matemática, por exemplo, sem saber como formular um texto estruturalmente coeso segundo letra, sílaba, palavra e frase (gramática)? Ou sem saber distinguir entre uma falácia e um argumento validamente construído segundo uma demonstração por necessidade, ou por probabilidade (Dialética)? ou sem saber expressar os conteúdos mentais de forma coerente, válida e convincente para os que os escutam (retórica)? Essas disciplinas seriam então propedêuticas, apesar de serem as últimas no tempo, segundo o autor, uma vez que a análise lógica do conteúdo de um discurso sempre se dá após a consideração do seus conteúdos e argumentos.
"As sete artes são como instrumentos e treinamentos, pelos quais se prepara uum caminho para o espírito alcançar o conhecimento da verdade."
"O fundamento de toda a doutrina se encontra nas sete artes."
(Hugo de São Vitor - Didascálicon: A Arte de Ler)
A segunda na ordem das ciências é a (1) Teórica, que por sua vez, se divide em (a) Intelectível, (b) Inteligível e (c) Natural. A intelectível é a Teologia, que é divina; a inteligível é a matemática; e a natural, a física (considerada aqui como fisiologia). É interessante que, dentro da Matemática, é feita 4 subdivisões: Aritimética, Musica, Geometria e Astronomia; à Musica pode ser do mundo - o movimento do mundo como harmonia musical a ser regida pelo Maestro Divino -, dos homens e dos instrumentos - feitos pelos homens; já a geometria se divide em altimetria, planimetria ou cosmometria; e a Astronomia é como que um complemento da Geometria e vice versa, uma vez que a primeira considera os entes enquanto tem movimento, e a segunda enquanto são imóveis. Vale também pontuar que Astronomia aqui distingue-se de Astrologia, uma vez que a primeira estuda a lei dos astros enquanto são moventes (astros-nomos), e a segunda estuda o "discurso dito pelos astros", podendo ser subdividida em supersticiosa - que vê nos astros uma influencia nas coisas contingentes e no livre arbítrio -, e natural - que estuda a composição dos corpos e sua moderação pelos corpos superiores quanto à saúde, fertilidade, etc.
A terceira na ordem das ciências é a (2) Filosofia Prática, que por sua vez se divide em (a) Solitária - diz respeito aos indivíduos - ética e moral; (b) Privada - diz respeito aos pais de familia e se divide em econômica e administrativa; (c) Pública, que diz respeito àqueles que são administradores da cidade, e se divide em civil e política. A ordem dos indivíduos entre si precede o estudo da ordem deles enquanto sujeitos a autoridade familiar, e a ordem familiar precede à ordem pública e esta última tem apenas caráter subsidiário sobre a família.
A quarta e última ordem, a (3) Mecânica, se divide na produção de (a) elementos internos e (b) elementos externos. Pouco se tem a falar desta.
Após responder as perguntas acerca do que deve se ler e da ordem das leituras, passemos ao terceiro e último preceito: Como devemos ler?
Hugo de São Vitor inicia a resposta pontuando três coisas necessárias ao estudo: (i) a natureza, (ii) o exercício e a (iii) disciplina. Aos nossos ouvidos contemporâneos parece absurdo afirmar algo tão obvio: nem todos tem a mesma disposição para os estudos, e as disposições naturais de uns são mais favoráveis à vida intelectual que a de outros; isto não quer dizer que os intelectuais são mais dignos em absoluto do que os homens simples, mas sim que possuem talentos diferentes que devem frutificar, à medida de suas capacidades, e por isso assim como para atividades artísticas uma certa sensibilidade estética é exigida, nas atividades intelectuais uma certa capacidade intelectual e discursiva mais acurada é exigida.
Em outras palavras, a vida intelectual como tal é uma vocação (e assim é tratada no clássico de A.D Sertillanges), e esta característica de chamado (vocare) pressupõe também que Aquele que chama dispôs-nos para aquilo para que nos chama - "a Graça não tolhe a natureza, mas a supõe e aperfeiçoa". Esta realidade foi magnificamente exposta por Dante Alighieri em sua Divina Comédia (Editora 34,2014) quando diz em seus versos:
Sempre Natura, se a si desafeito ambiente encontra, tão como semente fora de sua região, tem mau proveito.
Se o mundo, embaixo lá, pusesse a mente na, que Natura deu, distribuição, e a acompanhasse, boa seria a sua gente;
mas vós torceis para a religião um que nasceu para se cingir da espada, e tornais rei quem apto é pra sermão;
e é o nosso rumo assim fora da estrada
(Paraíso, Canto VIII, 139-148)Mas além da natureza, das disposições naturais e gosto pelo estudo e pelo labor intelectual, é necessário o exercício. É preciso que exercitemos as nossas disposições naturais para o seu melhor desempenho, e não faze-lo seria o equivalente à parábola evangélica do empregado que enterrou os seus talentos; de fato, não adiantaria de nada a boa disposição da natureza, se o homem não exercita e aperfeiçoa seus talentos, se é preguiçoso e disperso, se é cheio de paixões baixas que não luta para vencer. É preciso exercitar-se na atividade intelectual.
Por fim, a disciplina é necessária ao estudo, sendo considerada como a conjunção perfeita entre os bons costumes e o conhecimento. O homem disciplinado, sendo preso a uma rotina com disciplina rigorosa, se torna o homem mais livre para o exercício de suas atividades com excelência. O desordenado, o indisciplinado, este sim, com sua "liberdade" é escravo das contingencias, imprevistos e desordens nos estudos. A virtude da ordem, da disciplina, é a virtude da liberdade.
Tanto a o exercício quanto a disciplina podem ser entendidos também sob uma clave moral, uma vez que a disciplina também tem de ser das paixões e dos sentidos, ordenando-os numa harmonia interior que não os faz dispersar do trabalho intelectual. A antropologia realista de S. Tomás de Aquino mostra essa realidade muito claramente: ora, se o conhecimento inicia-se nos sentidos, e portanto, a dimensão corpórea está substancialmente à dimensão intelectual/anímica (anima forma corporis), então qualquer defeito ou sensibilidade desordenada há de ser um obstáculo grande na percepção da realidade; mais uma vez aqui se mostra a maneira íntima em com a qual estão unidas a vida moral e intelectual. Essa ligação entre antropologia/psicologia e vida intelectual será melhor investigada nas próximas postagens.
(Na próxima parte, aprofundaremos o estudo dos conselhos mais particulares, que podem ser úteis para o melhor aproveitamento das leituras, anotações e exposições. Continua....)
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