Um artigo relevante, no qual Germain Grisez, John Finnis(o mais relevante expoente da Escola na área do Direito) e Joseph Boyle buscam aprofundar os fundamentos da teoria, pode ser útil como introdução - apesar de sua extensão. Será feita aqui uma sintese dos principais temas propostos no artigo de 1987 "Pratical Principles, Moral Truth, and Ultimate Ends".
Iniciando o artigo, os autores deixam claro que, ao mesmo tempo em que a teoria por eles desenvolvida se aproxima e tem por fonte principal a obra de Tomás de Aquino e de Aristóteles, ela em muitos pontos diverge deles e traz contribuições próprias. Dessa maneira, alguns termos centrais não serão uma mera repetição de termos aristotélicos ou tomistas, mas aprofundamentos que muitas vezes exigirão novos termos mais adequados ao debate analitico ao qual se inserem.
Os temas tratados no artigo serão:
(i) Primeiros princípios do conheciemento prático da moralidade,
(ii) A relação destes primeiros princípios com outras cognições e sua verdade específica e
(iii) Sua relação com os fins últimos e a religião.
Ao tratar da estrutura da inteligência humana, vemos que ela possui uma dimensão cognoscitiva, e outra dimensão, prática. Essas dimensões são duas faces de uma mesma e unica razão, mas que são analiticamente distintas para fins de descrição. Quando se fala em ética, é principalmente ao aspecto prático de nossa inteligência que nos referimos; e para melhor descrever os princípios dessa inteligencia prática, os autores falam nos termos de motivos básicos (basic motives), que são irredutíveis a qualquer motivo anterior, isto é, são razões últimas para a ação, no sentido que não são instrumentais para atingir algum fim ulterior. Estes principios são descobertos não a partir de uma análise antropológica teorica da natureza humana, mas sim são descobertos ao examinarmos os objetos dos quais são princípios.
Ainda descrevendo a ação humana, distingue-se entre propósitos - que é um estado de coisas que pode ou não existir na realidade - e bens básicos , sendo que os segundos são razões subjacentes aos propositos. O bem, em outras palavras, é aquilo que torna alguem racionalmente interessado em agir pelo propósito, e dessa forma, os propósitos em si não instanciam nenhum bem concreto, mas de alguma forma participam deste bem básico; mas quando este propósito é atingido, dizemos que o bem pelo qual a razão está interessada em agir por aquele proposito foi instanciado.
Quanto aos propósitos, é feita no artigo uma distinção entre dois aspectos seus: (I) beneficio (benefit) (II) meta (goal). O primeiro seria o aspecto inteligivel de um propósito básico; o segundo seria a meta emocionalmente desejada. Aqui possuimos dois aspectos: intelectual e emocional, sendo que primariamente o foco se da no (I), em razão do objeto dessa investigação ser a ação racionalmente motivada, que possuindo esse aspecto inteligivel, dirige-se ao florescimento da pessoa como um todo, e não só a suas satisfação emocional. Mas os autores estão longe de um intelectualismo de cunho dualista que desconsidera em absoluto o papel das emoções na vida humana, e explicam que:
"Uma vez que as ações racionalmente dirigidas e escolhidas sempre são feitas com motivações emocionais, o propósito de cada ação destas inclui uma meta (goal). Motivos racionais dirigem a um florescimento (fullfilment) da pessoa como um todo; motivos emocionais dirigem a um florescimento da parte senciente da pessoa. Mas, ainda que sejam distintos um do outro, motivos racionais e emocionais estão dinamicamente unidos." (GRISEZ;FINNIS;BOYLE,1987, p.104-105)
Depois de descritas algumas das estruturas da ação humana, passemos aos primeiros principios da razão prática.
Em primeiro lugar, cabe destacar que os autores pontuam algumas caracteristicas desses principios da razão prática, isto é, desses bens básicos aos quais se dirigem nossas ações. A primeira nota caracteristica é a auto-evidencia, isto é, são conhecidos desde que se conheça o sentido de seus termos - auto-evidencia subjetiva. Isto quer dizer que esta análise dos primeiros principios, muito distante do que os criticos do jusnaturalismo gostariam de impugnar à teoria, não parte de deduções ou derivações de proposições anteriores, e são por isso indemostráveis tambem. Aqui duas perguntas podem surgir: (i) Se esses principios não podem ser derivados, como se dá nosso conhecimento sobre eles? Quais são os bens básicos?; e mais, (ii) se eles são indemostráveis, como se pode argumentar em favor deles, ja que nenhum argumento demontrativo seria possivel?
À primeira pergunta. pode-se responder que, nós os descobrimos não com um teste teórico dificílimo ou algo do tipo, mas simplesmente perguntando as razões pelas quais alguem age. E ao perguntar essas razões, entre as diversas respostas que serão dadas, podemos ver que todas podem ser reduzidas a um número de propósitos básicos, dirigidos a determinados bens básicos [i.e. que não visam bem ulterior; não instrumentais]. Essa lista de bens básicos (ou como Finnis dirá em obras posteriores, bens humanos básicos), não é uma mera criação humana contingente e variavel na história, mas sim são aspectos do florescimento das pessoas, e assim, correspondem a complexidades inerentes da natureza humana.
A divisão desta lista de Bens que os autores fazem aqui se divide em duas partes: (a) Bens substantivos - que são compartilhados por nós mesmo antes de deliberadamente os perseguirmos - , e (b) Bens Reflexivos - que são formas de harmonia entre os bens substanciais. Os (a) substanciais são (a.i) vida, (a.ii) experiencia estética, (a.iii) conhecimento, (a.iv) jogo e trabalho; ja os (b) reflexivos são (b.i) amizade/sociabilidade, (b.ii) paz interior, (b.iii) integridade e (b.iv) religião - que aqui compreende qualquer cosmovisão abrangente que fornece sentido para todas as realidades.
Para os que estudam a obra de John Finnis, verão que esta lista é um tanto quanto diferente da lista fornecida em seu livro Lei Natural e Direitos Naturais, onde ja não se faz a diferença entre bens substantivos e reflexivos, e também surge um bem humano básico que de alguma forma se relaciona com os aspectos (b.ii) e (b.iii): o bem da razoabilidade prática. Após o amadurecimento da obra de Finnis, que atinge um de seus ápices em Aquinas e em seus Collected Essays, mais um bem básico é incluido na lista: o bem humano básico do casamento. Enfim, são apenas comentários que podem ser úteis em uma perspectiva geral e mais vasta da obra.
Um corolário que os autores atingem - e que é uma das principais controvérsias dentro da Teoria Neoclássica, que recebe críticas contundentes de tomistas mais ortodoxos -, é que esses bens [humanos] básicos são incomensuráveis. A tese da incomensurabilidade pode ser resumida da seguinte maneira:
"uma vez que os bens básicos são razões sem razões ulteriores [i.e. são razões últimas], eles são principios primarios. E sendo princípios primarios, os bens de diversas categorias são incomensuraveis uns com os outros.
Porque, se são comensuráveis, tem de ser homogeneos uns com os outros ou redutiveis a algo anterior pelo qual eles poderiam ser mensurados. Se eles são homogeneos uns com os outros, não constituiriam diversas categorias. Se são redutiveis a algo anterior, não seriam primários os principios. Portanto, são incomensuraveis." (GRISEZ;FINNIS; BOYLE, 1987, p. 110)Mas outra pergunta ainda permanece: se eles são indemonstráveis, é possivel fazer defesa deles de alguma forma? Parece que sim! Ainda que não possamos demonstrar a mos geometricus os principios primários da razão prática, podemos defendê-los a partir de uma determinada dialetica. Primeiramente, sendo eles auto-evidentes e razões básicas de toda e qualquer ação, um argumento que Finnis levanta em seu Lei Natural e Direitos Naturais é de que qualquer tentiva de negação desses bens constitui uma contradição performática, e uma auto-refutação: ora, aquele que diz que o conhecimento não é um bem básico, uma razão básica para agir, pelo próprio fato de negar o status de bem ao conhecimento, o afirma e o experimenta como um bem ao saber que "o conhecimento não é um bem básico"; o mesmo que nega a sociabilidade só consegue fazê-lo negando para outrem, e no próprio ato de negar a este outro, experiementa o bem da sociabilidade como algo para ser feito, nem que seja para negar que ela seja um bem. Finnis diz que essas situações são análogas ao exemplo do cantor que inventa uma música cuja letra é "não estou cantando" e a canta - o próprio ato de cantar contradiz o conteudo cantado.
Em segundo lugar, os bens humanos básicos não estão no sentido forte de dever moral imperativo. Finnis foca no carater diretivo dos bens básicos, e mostra que a existencia desses bens não é algo criado por alguns homens ou por alguns filosofos morais que mandam seguir esses bens: pelo contrário, estes bens de alguma forma ja são seguidos por todos, ainda que esta instanciação se de de formas distintas e muitas vezes de formas mais ou menos razoáveis. Por exemplo, os autores não estão dizendo que existe uma regra de que os homens devem buscar a vida e o conheciento, mas sim que eles ja buscam esses bens, que são essas algumas das razões básicas pelas quais as pessoas agem. Isto é algo descritivo da ação humana, e não puramente normativo. Essa afirmação fica clara mesmo que se alegue a variação nas culturas, e quem quer que tenha lido o estudo de C.S. Lewis, A Abolição do Homem, verá que mesmo as diversas práticas culturais e morais pela história das sociedades guardam entre si uma semelhança na visão do que seja um bem e o que não seja, mas que pode haver alguns obstaculos morais, culturais, sociais que impedem que este bem seja instanciado da forma mais razoavel possivel, e que haja coisas moralmente condenáveis nestes casos.
Ja chegando ao fim desta primeira parte, estamos no ponto em que se esta a buscar o Principio Primarissimo da razão prática, aquele sobre o qual "se fundam todos os outros preceitos da lei natural" (Summa Theol. I-IIae, Q. 94, a.2, resp). Ora, como é bem sabido, S. Tomás mostra que há uma analogia entre o principio primeiro da razão teórica com o mesmo da razão prática. Se é verdade que a razão teórica tem por fim a verdade teórica - que é uma adequação do intelecto à coisa -, então a razão prática deve ter uma verdade prática a ser alcançada tambem; só que para os autores, esta verdade prática por sua vez não constitui uma adequatio a uma verdade teórica anterior (senão o principio não seria primarissimo, mas termo médio de premissa anterior), mas sim em antecipar a realização do que é possivel fazer em conformidade com a proposição prática, e na diretividade da ação para a realização. Sinteticamente, pode-se dizer que:
"A verdade (isto é, a adequação) do conhecimento prático é a conformidade do que é para ser através do conhecimento até o conhecimento que irá ajudar a trazer isto." (GRISEZ;FINNIS; BOYLE; 1987, p. 117)Então, se de fato há essa analogia, e sabe-se que o primeiro principio da razão teórica é o principio de não contradição, qual seria o primeiro principio da razão prática?
Só poderemos responder essa pergunta ao analisar qual o status deste na razão pratica: não serve como premissa, mas simplesmente proibe incoerencia, e assim, é condição de possibilidade para qualquer raciocinio teórico posterior, mas não é necessáriamente premissa de silogismos posteriores. Ora, o primeiro principio [primarissimo] da razão prática, é "bonum est faciendum et prosequendum et malum vitandum" (ST, I-IIae, Q. 94, a.2. resp), que funciona como uma condição de possibilidade para qualquer ação, e assim, "proibe" a ausencia de télos - pointlessness - na ação (o bem tem razão de fim). O télos (point) do conhecimento prático é fornecer diretividade ao florescimento humano. Com a palavra dos autores, encerramos essa primeira parte desta sintese deste denso artigo:
"Conhecimento pratico dirige ao florescimento possivel atraves da ação, e beneficios constituem este florescimento. Então, o arrazoar sem télos (pointlessness thinking), que não pode dirigir a ação para realizar beneficio algum, não adiciona em nada para o conhecimento da verdade prática. Se esse pensamento sem télos é coerente, não ficaria aquém da verdade e falsidade da mesma forma que o arrazoar incoerente - independentemente de ser teorico ou prático - fica. Dessa forma, uma vez que não dirige a ação para trazer algo à conformidade com uma proposição prática, o pensamento sem télos (pointlessness) fica aquem da verdade ou falsidade prática. Portanto, ao proibir essa ausencia de finalidade, o primeiro principio da razão prática faz sua apropriada e indispensável contribuição para o conhecimento prático." (GRISEZ;FINNIS;BOYLE, 1987, p. 120)
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