No livro relativamente denso e complexo do autor, Pessoas: Ensaios sobre a Diferença entre Algo e Alguém (UNISINOS, 2015), ele busca responder a pergunta: o que significa ser "pessoa"? A qual realidade este termo remete? E se remete a alguma realidade, esta realidade é uma realidade objetivamente constatada e experimentada, ou é subjetivamente construída ou aferida?
Entre as diversas abordagens sobre o tema, é clássica a genealogia do conceito de pessoa que parte dos gregos e suas peças teatrais (prosópon), passando pelo uso jurídico da civilística romana (persona), até chegar a reflexão da teologia católica do Concílio de Niceia e Constantinopla, que reafirmaram a Natureza Divina de Cristo e formularam de forma mais precisa a realidade fundamental da Fé Católica: a Doutrina da Trindade. Nesta abordagem teológica, se explica por meio deste termo de que forma Deus pode ser Uno, e ao mesmo tempo três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, e como são realmente distintos, ainda que sejam da mesma natureza, Deus.
O ponto central para o conceito de pessoa, tal como conhecemos hoje, se deu a partir da formulação de Severino Boécio, que ao tratar do mesmo tema - i.e. natureza divina - , formula que pessoa é "substantia individualis naturae rationalis" , e dá à sua definição um substrato ontológico bem preciso, que será aprofundado na reflexão posterior. Ja Ricardo de São Vitor, complementa a definição a partir da substituição da palavra "substantia" para "existentia", na qual vê que a realidade à qual nos referimos ao dizer "pessoa", é muito melhor descrita ao falar não da natureza racional abstrata, mas sim da realização existencial individual dessa natureza, daquele que subsiste nesta natureza.
Tomás de Aquino, também segue a definição de Boécio e fornece em seu Tratado do Homem (I, Q. 75-87) um aprofundamento na constituição anímico corpórea do ser humano, como animal racional, e como distinto e elevado com uma eminencia superior à do resto da criação por sua capacidade de atividades que superam muito a matéria corporal (como as atividades intelectuais, a possibilidade de conhecer a Deus, etc), e por seu destino sobrenatural. E por aqui, já se desenha aos poucos um sentido que vai além de um simples status ontológico, mas traz também um sentido axiológico: pessoa não designa simplesmente uma realização existencial de uma natureza racional, mas se compreende que por essa eminencia na ordem do ser, este termo é também um nomen dignitatis, um termo que remete a uma dignidade que as pessoas tem.
Considerando também a linguagem ordinária, percebe-se que este termo remete a esta dignidade. Aqueles a quem chamamos de "pessoas" são dignos de um certo tratamento que é uma resposta adequada ao seu valor de realidade pessoal. Não é estranho quando dizem : "não trate ele assim, pois ele é uma pessoa", e parece que o sentido da frase não seria o mesmo caso substituíssemos "pessoa" por "homo sapiens"; e dessa forma, a linguagem comum nos atesta estes dois aspectos objetivos da realidade pessoal: ontológico e axiológico.
Se por um lado é verdade que estas formulações objetivas nos livram de cair em um subjetivismo ou arbitrariedade quanto às pessoas, por outro lado não são capazes de expressar a realidade de sujeito, a perspectiva subjetiva das pessoas. A perspectiva personalista de matriz tomista, que tem Robert Spaemann como um de seus maiores expoentes - juntamente com Karol Wojtyla, Dietrich von Hildebrand, Gabriel Marcel, Elio Sgreccia -, busca fazer uma síntese entre a filosofia do ser de Tomás de Aquino (aspecto objetivo) e a filosofia da consciência de influência de Edmund Husserl (subjetividade - não subjetivista), e apresentar a pessoa não apenas em seu aspecto objetivo, a partir da perspectiva de terceira pessoa, mas também considerando o aspecto do sujeito em primeira pessoa (obviamente, com o substrato ontológico de matriz realista da filosofia tomista).
Por não tratar a pessoa apenas sobre este aspecto do observador, mas complementando este aspecto com o aspecto subjetivo, Spaemann acaba por criar várias formulações de aspectos da pessoa humana, que, ao invés de consistirem em descrições positivas sobre a natureza humana e seu caráter pessoal, parte de uma descrição antropológica que alguns de seus comentadores chamam de "antropologia apofática", relacionando este método com a reflexão da teologia apofática, formulada por Pseudo- Dionísio Areopagíta, que afirma que de Deus não podemos dizer o que Ele é, mas somente o que Ele não é. Isto é, mais preciso seria dizer que Deus é a-temporal, sem limitação nenhuma a seu poder, imortal, e outros adjetivos que se referem mais à formulações negativas do que positivas.
Se por um lado, o método do Pseudo Dionísio se fundava na incapacidade de apreensão da essência divina, o método de Spaemann não tem esta mesma justificativa. Mas Spaemann vê na realidade pessoal uma eminência que não pode ser apreendida simplemente como um experimento empírico de laboratório; pelo contrário, a pessoa é tão eminente, que sua formulação pode explicitar o quanto a pessoa não se reduz à sua natureza da mesma forma que os outros seres vivos se reduzem.
Dizemos ser pessoas aqueles que, subsistindo em uma natureza racional, são capazes de transcende-la de certa forma, de auto-transcendência. Essa auto-transcendência é formulada nos termos de (i) Descentramento, (ii) Negatividade. Esses termos, que expressam mais uma negação ( des- centramento; negatividade) são o "elemento apofático" da antropologia personalista do autor.
Em primeiro lugar, a capacidade de descentramento mostra que a pessoa é capaz de distanciar-se de suas paixões, intenções, desejos, etc. Ainda que esteja de certa forma sujeito a eles, é capaz de manter uma distancia como um observador em terceira pessoa, de relativizar a si mesmo, de analisar-se e colocar-se como fenômeno; esta capacidade de objetivação e auto-relativização revela a importante distinção que se deve fazer entre pessoa e sua natureza. Talvez por essa razão teremos de concordar com a formulação de Ricardo de São Vitor, que ao falar em "existentia" é capaz de explicar essa realidade da realização individual da natureza racional, que talvez a palavra "substantia" de Boécio poderia obscurecer, caso fosse considerada como tradução de "Physis" ou "ousia", que seria o equivalente à falar em natureza ou substancia. Essa capacidade de distanciamento pressupõe uma diferenciação interior do ser humano em relação a si mesmo, e esta diferenciação é consciente nos seres humanos, e não o é nos outros animais. Spaemann explica que,
[f]alando de si mesmo na terceira pessoa, o ser humano abandona a posição central que todo ser vivo natural assume na relação com seu ambiente e através dos olhos dos outros se vê como um acontecimento no mundo. Para ver-se desse modo, ele precisa assumir um ponto de visa fora de si mesmo, fora de seu centro orgânico. A moralidade só é possivel com base nessa capacidade de auto-objetivação e, desse modo, de auto-relativização. (SPAEMANN, 2015, p.20)Em segundo lugar, a segunda formulação foi a partir da negatividade. Ele inicia seu capitulo 4 com as seguintes afirmações:
Pessoas não são simplesmente o que são. Elas são determinadas por uma diferença em relação ao que são, por um momento de negatividade. A negatividade diferencia o existente vivo do existente não vivo. Na pessoa, ela experimenta sua intensificação máxima. (SPAEMANN, 2015,p. 39)A negatividade está ligada à formulação da auto-transcendência. E significa que as pessoas não estão presas a um determinismo de natureza, e que podem de certa forma transcende-la, uma vez que - como ja foi dito -, pessoa não é tanto a natureza racional abstratamente considerada, mas sim um modo especifico das naturezas racionais se concretizarem individualmente - como Ricardo de São Vitor diria, um modus existentiae. Essa negatividade em relação ao que são - isto é, sua natureza - se dá uma vez que consideramos que as pessoas não são sua natureza, mas "tem" sua natureza. Podemos dizer então que
[n]o conceito de pessoa, concebe-se um ser original próprio ainda mais original do individuo particular. Não é como se tais indivíduos não tivessem natureza e tivessem de decidir por si mesmos o que eles são. Mas eles podem adotar um comportamento a mais em relação a essa sua natureza. Eles podem se apropriar de suas leis essenciais em liberdade ou transgredi-las e 'ficar desnaturados'. Por essa razão, enquanto entes pensantes eles podem ser denominados não só como pertencentes à sua espécie, mas também como indivíduos que 'existem em tal natureza'. Isso quer dizer: eles existem como pessoas. (SPAEMANN, 2015, p. 33)A terceira formulação, seria a da auto-transcendência em termos positivos. Ja vimos que as formulações negativas são como que um elemento apofático que nos ajuda a distinguir as pessoas do mundo das coisas que simplesmente são. Essa terceira formulação, certamente já de certo modo tratada nas duas formulações anteriores, é a liberdade da pessoa em relação à sua natureza. Com o que ja ficou dito, a pessoa é um modo de existir em uma essência racional, e não essa natureza racional mesma, e isto quer dizer que a pessoa não se reduz aos seus atributos, mas de certa forma os possui. Possuir é próprio das pessoas, mas ser possuído é próprio das coisa.
Dois esclarecimentos são necessários prevendo duas possíveis objeções. A primeira, poderia ser de que Spaemann formula uma teoria dualista que hipostasia o self que "dirige" a natureza como se fosse um instrumento da pessoa, e que desconsidera a importância constitutiva da natureza para a pessoa; a segunda objeção possível seria de que, ao formular que a pessoa "possui" uma natureza e possui uma liberdade em relação a ela, Spaemann estaria defendendo uma tese que poderia ser formulada para defender várias teses desconstrucionistas, anti-metafísicas, etc, como se a pessoa pudesse desconstruir sua natureza racional como se ela fosse mero elemento acidental à ela.
A primeira e a segunda objeção poderiam ser respondidas ao explicar que, quando se fala em auto-transcendência e suas formulações, se busca não apenas fazer uma descrição ontológica da natureza humana da mesma maneira que se descreve a natureza de um sapo, por exemplo. Aqui se quer apenas dizer que, ainda que seja verdade que o ser humano é de certa forma sua natureza (por ser a realização individual de uma natureza racional), e que ele é por natureza um ente corporal, e que essa dimensão corporal é essencial e manifesta a pessoa - e manifestando o interior, a dimensão exterior é parte constitutiva da pessoa -, a pessoa de certo modo é capaz de atitudes que são inexplicáveis sem o recurso das formulações negativas e da auto-transcendência. É impossível explicar por meio do simples recurso à natureza o auto-sacrifício ou do martírio, ou mesmo a capacidade de perdoar ou prometer, a possibilidade das maiores crueldades e ao mesmo tempo a possibilidade de ser virtuoso - e em última análise, um santo. Se quer apenas dizer que a ação pessoal não é determinada por fatores da natureza de forma tão definitiva que não possa ser elevada pela pessoa humana. Viktor Frankl (1905-1997) experimentou essa capacidade humana única de elevar-se e rebaixar-se, que não pode simplesmente ser descrita como consequências causalmente determinadas por determinada circunstância. Ele diz sobre sua experiencia no campo de concentração:
Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-Nosso ou o Shemá Yisrael. (FRANKL, 2011, p. 176)Há portanto, um certo núcleo pessoal que está livre dos determinismos circunstanciais e mantem uma certa liberdade até com suas próprias disposições naturais.
Esta não é uma exposição exaustiva das formulações de Robert Spaemann, mas apenas uma tentativa de sistematizar o que as vezes parece confuso em sua obra e suas formulações. De certa forma, essas formulações por vezes imprecisas dão margem para incompreensões e críticas muitas vezes infundadas. Mas que este pequeno texto possa ter sido útil para os que procuram se aventurar na obra deste grande filósofo e descobrir algumas características que distinguem "algo" de "alguém" .
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