segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O que é ser pessoa? Algumas formulações da "antropologia apofática" de Robert Spaemann

Este pequeno ensaio é uma homenagem ao grande filósofo alemão Robert Spaemann, falecido no dia 11/12/2018, que teve uma obra vasta e importante para a filosofia contemporânea. Conheci sua obra a partir de uma pesquisa que iniciei ano passado no Grupo de Pesquisa "Tradição da Lei Natural" na linha de "Bioética, Lei Natural e Direito à Vida", e quando tive em mãos pela primeira vez o livro que iremos comentar aqui, minhas impressões sobre o autor não foram as melhores: sua escrita parecia confusa, desordenada, dispersa, e muitas outras características que me fizeram desistir de ler na metade, sem conseguir tirar lição substancial alguma. Até que um dia tive em mãos uma dissertação de Matthew A. Schimpf, cujo nome era "The Theory of Person in Robert Spaemann's Ethical Assentiments", que foi capaz de sistematizar as formulações do livro do autor e que me fez redescobrir sua obra e compreender sua grandeza e profundidade. Depois dessa leitura, tudo o que vem do Spaemann parece ser uma oportunidade de aprofundamento; se tornou um dos autores indispensáveis ao estudo.
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No livro relativamente denso e complexo do autor, Pessoas: Ensaios sobre a Diferença entre Algo e Alguém (UNISINOS, 2015), ele busca responder a pergunta: o que significa ser "pessoa"? A qual realidade este termo remete? E se remete a alguma realidade, esta realidade é uma realidade objetivamente constatada e experimentada, ou é subjetivamente construída ou aferida?

Entre as diversas abordagens sobre o tema, é clássica a genealogia do conceito de pessoa que parte dos gregos e suas peças teatrais (prosópon), passando pelo uso jurídico da civilística romana (persona), até chegar a reflexão da teologia católica do Concílio de Niceia e Constantinopla, que reafirmaram a Natureza Divina de Cristo e formularam de forma mais precisa a realidade fundamental da Fé Católica: a Doutrina da Trindade.  Nesta abordagem teológica, se explica por meio deste termo de que forma Deus pode ser Uno, e ao mesmo tempo três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, e como são realmente distintos, ainda que sejam da mesma natureza, Deus.

O ponto central para o conceito de pessoa, tal como conhecemos hoje, se deu a partir da formulação de Severino Boécio, que ao tratar do mesmo tema - i.e. natureza divina - , formula que pessoa é "substantia individualis naturae rationalis" , e dá à sua definição um substrato ontológico bem preciso, que será aprofundado na reflexão posterior. Ja Ricardo de São Vitor, complementa a definição a partir da substituição da palavra "substantia" para "existentia", na qual vê que a realidade à qual nos referimos ao dizer "pessoa", é muito melhor descrita ao falar não da natureza racional abstrata, mas sim da realização existencial individual dessa natureza, daquele que subsiste nesta natureza.

Tomás de Aquino, também segue a definição de Boécio e fornece em seu Tratado do Homem (I, Q. 75-87) um aprofundamento na constituição anímico corpórea do ser humano, como animal racional, e como distinto e elevado com uma eminencia superior à do resto da criação por sua capacidade de atividades que superam muito a matéria corporal (como as atividades intelectuais, a possibilidade de conhecer a Deus, etc), e por seu destino sobrenatural. E por aqui, já se desenha aos poucos um sentido que vai além de um simples status ontológico, mas traz também um sentido axiológico: pessoa não designa simplesmente uma realização existencial de uma natureza racional, mas se compreende que por essa eminencia na ordem do ser, este termo é também um nomen dignitatis, um termo que remete a uma dignidade que as pessoas tem.

Considerando também a linguagem ordinária, percebe-se que este termo remete a esta dignidade. Aqueles a quem chamamos de "pessoas" são dignos de um certo tratamento que é uma resposta adequada ao seu valor de realidade pessoal. Não é estranho quando dizem : "não trate ele assim, pois ele é uma pessoa", e parece que o sentido da frase não seria o mesmo caso substituíssemos "pessoa" por "homo sapiens"; e dessa forma, a linguagem comum nos atesta estes dois aspectos objetivos da realidade pessoal: ontológico e axiológico.

Se por um lado é verdade que estas formulações objetivas nos livram de cair em um subjetivismo ou arbitrariedade quanto às pessoas, por outro lado não são capazes de expressar a realidade de sujeito, a perspectiva subjetiva das pessoas. A perspectiva personalista de matriz tomista, que tem Robert Spaemann como um de seus maiores expoentes - juntamente com Karol Wojtyla, Dietrich von Hildebrand, Gabriel Marcel, Elio Sgreccia -, busca fazer uma síntese entre a filosofia do ser de Tomás de Aquino (aspecto objetivo) e a filosofia da consciência de influência de Edmund Husserl (subjetividade - não subjetivista), e apresentar a pessoa não apenas em seu aspecto objetivo, a partir da perspectiva de terceira pessoa, mas também considerando o aspecto do sujeito em primeira pessoa (obviamente, com o substrato ontológico de matriz realista da filosofia tomista).

Por não tratar a pessoa apenas sobre este aspecto do observador, mas complementando este aspecto com o aspecto subjetivo, Spaemann acaba por criar várias formulações de aspectos da pessoa humana, que, ao invés de consistirem em descrições positivas sobre a natureza humana e seu caráter pessoal, parte de uma descrição antropológica que alguns de seus comentadores chamam de "antropologia apofática", relacionando este método com a reflexão da teologia apofática, formulada por Pseudo- Dionísio Areopagíta, que afirma que de Deus não podemos dizer o que Ele é, mas somente o que Ele não é. Isto é, mais preciso seria dizer que Deus é a-temporal, sem limitação nenhuma a seu poder, imortal, e outros adjetivos que se referem mais à formulações negativas do que positivas.

Se por um lado, o método do Pseudo Dionísio se fundava na incapacidade de apreensão da essência divina, o método de Spaemann não tem esta mesma justificativa. Mas Spaemann vê na realidade pessoal uma eminência que não pode ser apreendida simplemente como um experimento empírico de laboratório; pelo contrário, a pessoa é tão eminente, que sua formulação pode explicitar o quanto a pessoa não se reduz à sua natureza da mesma forma que os outros seres vivos se reduzem.

Dizemos ser pessoas aqueles que, subsistindo em uma natureza racional, são capazes de transcende-la de certa forma, de auto-transcendência. Essa auto-transcendência é formulada nos termos de (i) Descentramento, (ii) Negatividade. Esses termos, que expressam mais uma negação ( des- centramento; negatividade) são o "elemento apofático" da antropologia personalista do autor.

Em primeiro lugar, a capacidade de descentramento mostra que a pessoa é capaz de distanciar-se de suas paixões, intenções, desejos, etc. Ainda que esteja de certa forma sujeito a eles, é capaz de manter uma distancia como um observador em terceira pessoa, de relativizar a si mesmo, de analisar-se e colocar-se como fenômeno; esta capacidade de objetivação e auto-relativização revela a importante distinção que se deve fazer entre pessoa e sua natureza. Talvez por essa razão teremos de concordar com a formulação de Ricardo de São Vitor, que ao falar em "existentia" é capaz de explicar essa realidade da realização individual da natureza racional, que talvez a palavra "substantia" de Boécio poderia obscurecer, caso fosse considerada como tradução de "Physis" ou "ousia", que seria o equivalente à falar em natureza ou substancia. Essa capacidade de distanciamento pressupõe uma diferenciação interior do ser humano em relação a si mesmo, e esta diferenciação é consciente nos seres humanos, e não o é nos outros animais. Spaemann explica que,
[f]alando de si mesmo na terceira pessoa, o ser humano abandona a posição central que todo ser vivo natural assume na relação com seu ambiente e através dos olhos dos outros se vê  como um acontecimento no mundo. Para ver-se desse modo, ele precisa assumir um ponto de visa fora de si mesmo, fora de seu centro orgânico. A moralidade só é possivel com base nessa capacidade de auto-objetivação e, desse modo, de auto-relativização. (SPAEMANN, 2015, p.20)
Em segundo lugar, a segunda formulação foi a partir da negatividade. Ele inicia seu capitulo 4 com as seguintes afirmações:
Pessoas não são simplesmente o que são. Elas são determinadas por uma diferença em relação ao que são, por um momento de negatividade. A negatividade diferencia o existente vivo do existente não vivo. Na pessoa, ela experimenta sua intensificação máxima. (SPAEMANN, 2015,p.  39)
A negatividade está ligada à formulação da auto-transcendência. E significa que as pessoas não estão presas a um determinismo de natureza, e que podem de certa forma transcende-la, uma vez que - como ja foi dito -, pessoa não é tanto a natureza racional abstratamente considerada, mas sim um modo especifico das naturezas racionais se concretizarem individualmente - como Ricardo de São Vitor diria, um modus existentiae. Essa negatividade em relação ao que são - isto é, sua natureza - se dá uma vez que consideramos que as pessoas não são sua natureza, mas "tem" sua natureza. Podemos dizer então que
[n]o conceito de pessoa, concebe-se um ser original próprio ainda mais original do individuo particular. Não é como se tais indivíduos não tivessem natureza e tivessem de decidir por si mesmos o que eles são. Mas eles podem adotar um comportamento a mais em relação a essa sua natureza. Eles podem se apropriar de suas leis essenciais em liberdade ou transgredi-las e 'ficar desnaturados'. Por essa razão, enquanto entes pensantes eles podem ser denominados não só como pertencentes à sua espécie, mas também como indivíduos que 'existem em tal natureza'. Isso quer dizer: eles existem como pessoas. (SPAEMANN, 2015, p. 33)
A terceira formulação, seria a da auto-transcendência em termos positivos. Ja vimos que as formulações negativas são como que um elemento apofático que nos ajuda a distinguir as pessoas do mundo das coisas que simplesmente são. Essa terceira formulação, certamente já de certo modo tratada nas duas formulações anteriores, é a liberdade da pessoa em relação à sua natureza. Com o que ja ficou dito, a pessoa é um modo de existir em uma essência racional, e não essa natureza racional mesma, e isto quer dizer que a pessoa não se reduz aos seus atributos, mas de certa forma os possui. Possuir é próprio das pessoas, mas ser possuído é próprio das coisa.

Dois esclarecimentos são necessários prevendo duas possíveis objeções. A primeira, poderia ser de que Spaemann formula uma teoria dualista que hipostasia o self que "dirige" a natureza como se fosse um instrumento da pessoa, e que desconsidera a importância constitutiva da natureza para a pessoa; a segunda objeção possível seria de que, ao formular que a pessoa "possui" uma natureza e possui uma liberdade em relação a ela, Spaemann estaria defendendo uma tese que poderia ser formulada para defender várias teses desconstrucionistas, anti-metafísicas, etc, como se a pessoa pudesse desconstruir sua natureza racional como se ela fosse mero elemento acidental à ela.

A primeira e a segunda objeção poderiam ser respondidas ao explicar que, quando se fala em auto-transcendência e suas formulações, se busca não apenas fazer uma descrição ontológica da natureza humana da mesma maneira que se descreve a natureza de um sapo, por exemplo. Aqui se quer apenas dizer que, ainda que seja verdade que o ser humano é de certa forma sua natureza (por ser a realização individual de uma natureza racional), e que ele é por natureza um ente corporal, e que essa dimensão corporal é essencial e manifesta a pessoa - e manifestando o interior, a dimensão exterior é parte constitutiva da pessoa -, a pessoa de certo modo é capaz de atitudes que são inexplicáveis sem o recurso das formulações negativas e da auto-transcendência. É impossível explicar por meio do simples recurso à natureza o auto-sacrifício ou do martírio, ou mesmo a capacidade de perdoar ou prometer, a possibilidade das maiores crueldades e ao mesmo tempo a possibilidade de ser virtuoso - e em última análise, um santo. Se quer apenas dizer que a ação pessoal não é determinada por fatores da natureza de forma tão definitiva que não possa ser elevada pela pessoa humana. Viktor Frankl (1905-1997) experimentou essa capacidade humana única de elevar-se e rebaixar-se, que não pode simplesmente ser descrita como consequências causalmente determinadas por determinada circunstância. Ele diz sobre sua experiencia no campo de concentração:
Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-Nosso ou o Shemá Yisrael. (FRANKL, 2011, p. 176)
Há portanto, um certo núcleo pessoal que está livre dos determinismos circunstanciais e mantem uma certa liberdade até com suas próprias disposições naturais.

Esta não é uma exposição exaustiva das formulações de Robert Spaemann, mas apenas uma tentativa de sistematizar o que as vezes parece confuso em sua obra e suas formulações. De certa forma, essas formulações por vezes imprecisas dão margem para incompreensões e críticas muitas vezes infundadas. Mas que este pequeno texto possa ter sido útil para os que procuram se aventurar na obra deste grande filósofo e descobrir algumas características que distinguem "algo" de "alguém" .
  

 

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