domingo, 9 de dezembro de 2018

Educação e Liberdade - Reflexões sobre a Educação Liberal

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Quando se fala sobre educação, em nossas conversas coloquiais, muitas vezes se escuta o caráter "libertador" da educação, que liberta o homem de sua condição social e que lhe permite ascender cada vez mais economicamente, socialmente e intelectualmente. Bem, concedamos que este uso pode fazer algum sentido e ter mostrar uma das faces que a educação pode alcançar; mas parece que este sentido mostra apenas um pálido esqueleto do que poderíamos chamar de "educação liberal". Aqui a educação se reduz à finalidade de "emancipação social".

Quando, na Grécia e em Roma em seus tempos clássicos, se contrapunha "artes liberais" e "artes técnicas e servis", o que queria se distinguir eram as artes feitas para os homens "livres" em contraposição aos escravos, e o titulo "liberais" se justificava uma vez que essas artes precisavam de um tempo e recursos financeiros acessíveis geralmente ao homem livre, e não ao escravo. Uma educação essencialmente aristocrática. Concedamos em parte também esse uso, mas pontuando da mesma forma que não expressa em sua integridade o sentido focal de artes/educação liberal. A liberdade aqui é entendida como condição civil, simplesmente.

Então o que seria "educação liberal"? Quais seriam os objetos dela, e quais seus fins?

Duas figuras me ajudaram a refletir acerca dessa relação entre educação e liberdade: Henri Frederic Amiel e Viktor E. Frankl, que me ajudarão a esboçar uma resposta a essas difíceis perguntas. 

Amiel, crítico literário do século XIX, em Genebra, é um homem que poderíamos dizer que não teve na crítica literária sua reputação. Podemos ler em suas páginas do Diário Íntimo, quase um compendio de lamentos, onde ele escreve sobre sua tibieza, sua falta de magnanimidade para as grandes obras, seus amores frustrados - ou melhor, sua dificuldade de amar -, e tudo o mais que nos levaria a pensar que ele, homem intelectualmente cheio de vigor, faz uma contraposição entre vida intelectual e felicidade, liberdade.
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Mas ao contrário do que poderia ser a primeira impressão, Amiel aparece em alguns dias exprimindo o quão realizado ele é nesta vida, entre prazeres literários, livros, meditações e até nos lamentos. De fato, alguns dias parece que ele clama para sair desse exílio que sua vida intelectual lhe dá; no dia 31 de dezembro de 1847, como que um melancólico pedido de socorro, diz:

"Preciso de afeição. Ofende a minha franqueza ter a aparência de um amigo e não o ser na realidade. A ausência de seriedade me repele decididamente. - Não sei ainda viver entre os homens; mormente entre os meus contemporâneos." (AMIEL, 2010, p. 51)

Mas por outro lado, vemos em outros dias uma alegria que só poderia ser fruída por um homem com sua profundidade de espírito. No dia 8 de junho de 1856, por exemplo, ele desabafa em tom de alegria:

"Dia feliz. Dei meu coração a todas as coisas, à natureza que hoje foi maravilhosamente bela, à família, que vi toda, aos amigos que encontrei, às rosas silvestres, aos grilos do fosso, ao céu azul no qual passou dançando toda a feeria das horas do dia e da noite, como uma ronda de gênios, de graças imortais, à Boa Providência que abençoei pela alegria de que eu estava inundando e pela poesia que banhou e penetrou os meus sentidos e a minha alma num crescendo quase de hora em hora." (AMIEL,2010, p. 127)

Bem, e o que os lamentos e alegrias de um homem do século XIX tem a dizer sobre educação liberal?
Amiel estudou humanidades, filosofia, línguas, filologia, e tudo o mais que um homem educado de seu tempo poderia desejar para ser um homem de letras, um intelectual. Em que sentido poderíamos dizer que Amiel era livre? De que liberdade a vida de Amiel revela que pode nos ajudar a entender o caráter "livre" da educação?


Em primeiro lugar, não é uma liberdade social como possibilidade de ascensão econômica, politica, ou algo do tipo; tampouco é uma liberdade meramente civil de não ter a condição de escravo. É uma liberdade muito maior: uma liberdade interior, moral. Uma intensa vida intima - não reduzindo íntima à "privada", mas sim remetendo à uma interior -, capaz de penetrar profundamente em todas as realidades humanas, capaz de sentir uma tristeza e desolação profundas, mas também uma mais profunda alegria. De Amiel se pode dizer que nada do que é humano lhe foi alheio, e que sua vida intelectual foi - apesar de sua paralisia em relação aos seus contemporâneos - um imenso diálogo; e aqui chegamos a primeira característica da educação liberal: universalidade.  


A palavra "universal" pode ser aplicada a um homem em vários sentidos. Pode-se dizer que ele é universalmente conhecido e famoso, pode-se dizer que ele consegue falar a todos, mas também pode-se dizer que ele é universal por ter dialogado com homens de todos os tempos: com os gregos Platão e Aristóteles, com o estilo de Cicero, com a escrita fervorosa de Santo Agostinho, com a perspicácia de Santo Tomas, com a eloquência de Chateubriand. O homem livre aqui é aquele que - como disse uma vez Chesterton - não está preso na má sorte de ser um homem atual demais, não está preso em seu tempo, e por isso consegue enxergar as coisas com mais clareza, perspectiva, e sabendo ao mesmo tempo ser distanciado das euforias de seus contemporâneos (por saber que "não há nada de novo sob o sol"), e também se envolvendo mais fervorosamente em todos os negócios de seu século, como que uma voz de sabedoria na crise.

Não me parece que Amiel, apesar de seus lamentos, trocaria sua vida por uma diferente. Ele - e todo aquele que segue uma reta vida intelectual, fundada na busca pela verdade e, e no amor pela Verdade mesma - é livre o suficiente para ver a riqueza interior que não pode ser sacrificada, para saber que "[c]ada qual tem sua obra" e que "[o] sapateiro que cose uma sola serve por uma multidão de intermediários para engrandecer a vida de Deus no homem" (AMIEL,p.52); é livre para viver este dever como vocação divina e para ver nisto sua alegria. A liberdade que mais se aproximaria do sentido que estamos tentando alcançar seria esta: a liberdade de sermos aquilo para o qual fomos feitos. Liberdade que parte de uma vida interior que não se abala pelas renuncias exigidas, e que de fato percebe que é melhor ser um Sócrates insatisfeito, do que um porco satisfeito.

Um segundo exemplo marcante da liberdade à qual o termo "Educação Liberal" em seu sentido central parece remeter é dado no maravilhoso livro do Psiquiatra alemão Viktor Frankl (1905-1997), Em Busca de Sentido, no qual o autor conta suas experiências em um campo de concentração. Entre os emocionantes relatos contados pelo Dr. Frankl, uma é de grande ajuda em nossa reflexão: ele relata que nos campos, algo o impressionou sobremaneira. É verdade que ele conta da "brutal luta pela existência", da apatia entre os prisioneiros, da fome, da insensibilidade que se vai adquirindo, e também do processo de despersonalização; desses relatos, intuitivamente poderíamos supor que os homens mais "duros" teriam uma melhor sorte dentro de tão extenuantes trabalhos e provações extremas, e que sobreviveriam de forma mais duradoura do que os vários intelectuais, homens de letras em geral, acadêmicos enviados para lá, uma vez que estes últimos não estariam acostumados com as exigências dos trabalhos. Mas o que a experiência do Dr. Frankl mostrou foi precisamente o inverso: no ambiente hostil e despersonalizador do campo de concentração, muitos dos que seriam considerados fortes foram os primeiros abalados, tendo problemas psíquicos que influíram em suas capacidades físicas, de tal forma que alguns foram levados até mesmo ao suicídio; com os homens de letras, pelo contrário, ele relata que

"[p]essoas sensíveis, originalmente habituadas a uma vida intelectual e culturalmente ativa, dependendo das circunstancias e a despeito de sua delicada sensibilidade emocional, experimentarão a difícil situação externa no campo de concentração de forma, sem dúvida, dolorosa; essa, não obstante, terá para elas efeitos menos destrutivos em sua existência espiritual. Pois justamente para essas pessoas permanece aberta a possibilidade de se retirar daquele ambiente terrível para se refugiar num domínio de liberdade espiritual e riqueza interior. Essa é a unica explicação para o paradoxo de, às vezes, justamente aquelas pessoas de constituição mais delicada conseguirem suportar melhor a vida num campo de concentração do que as pessoas de natureza mais robusta." (FRANKL, 2011, p. 53)


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Parece que essa riqueza interior e atitude perante o bem, mesmo em circunstancias extremas, é um dos pontos que clarifica a ideia de liberdade que um determinado tipo de educação - educação liberal - pode proporcionar. Note-se que no relato de Frankl - e em nossa reflexão - em nenhum momento se reduz a educação liberal a uma educação meramente intelectual. Muito pelo contrário: ela pressupõe principalmente uma atitude moral perante a realidade e quanto a tudo que cerca o homem; pressupõe uma clara hierarquia de valores que hão de fazer com que o homem confronte-se com o Fundamento de sua existência, com o próprio Deus, com Deus pessoa, e com Aquele que é a Verdade mesma e por quem tudo é verdadeiro, Cristo. 
É na atitude do intelectual cristão que a união entre virtude moral e intelectual pode atingir seu ápice, é na vida daquele que ama vê em Deus o principio e fim de sua vida que é capaz de ordenar todos os valores criados sob sua justa hierarquia. É na atitude cristã de desprendimento que o homem pode ao mesmo tempo desprezar tudo aquilo que é supérfluo e "amar o mundo apaixonadamente" (como dizia São Josemaria Escriva), vendo todas as coisas sub specie aeternitatis.  

Nunca será demais recordar as lições de um dos maiores educadores medievais, Hugo de São Vitor (1096- 1141), que quase não fazia distinção entre a atitude do monge e a atitude do intelectual perante o mundo. A liberdade que aquele que ama a verdade - philosopus - e a busca diligentemente se compara à atitude do monge de ver o mundo como um exílio; e em seu Didascalicon, finaliza um dos capítulos com uma bela lição:
"É delicado aquele para quem a pátria é doce; é forte aquele para quem toda terra é pátria; é perfeito aquele para quem todo mundo é exílio."
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Esta atitude moral, que se mostra em todo o seu vigor na tradição intelectual católica, será melhor investigada nas próximas reflexões.

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