Uma das principais questões levantadas nas discussões politicas contemporâneas é a inserção de argumentos morais dentro do debate público acerca da legislação.
A crítica liberal vê essa inserção como algo nocivo, como algo que moraliza a politica e que é em si algo injusto, uma vez que para os liberais a moralidade é algo pessoal, subjetivo ou pelo menos algo que pertence à esfera privada e deve ser circunscrita nesta. Ou seja, leis que buscam reforçar a moralidade pública são per se injustas. Nesse sentido, as questões politicas e legislativas deveriam ter sua resolução regida pelo principio de neutralidade, que permite com que pessoas que tem visões morais distintas (uma vez que para estes isso é algo meramente subjetivo e privado) possam debater esses temas.
No livro Making Man Moral,Robert P. George busca se contrapor a essa tese liberal em suas várias versões, e sustentar que (i) a consideração de critérios morais para decisões politicas e legislativas são per se válidas ,(ii) a neutralidade a respeito da moral não é possível e (iii) a lei possui um papel pedagógico importante (apesar de não ser primário) para a formação moral dos indivíduos — e que não é possível ser neutro quanto a isto.
O primeiro argumento contra a tese de George diz que o perfeccionismo exigido pela tradição central do pensamento ocidental é inconsistente com a liberdade, que a imposição de um padrão moral implica numa supressão da liberdade em suas mais diversas formas, e que por isso é incompatível com as democracias liberais contemporâneas. Como se a inserção de qualquer argumento moral dentro da lei fosse um “moralismo autoritário”.
Sobre o que ele chama de “Tradição Central do Pensamento Ocidental”, pode-se tomar como exemplares Aristóteles (384–322 a.C) e Santo Tomás de Aquino (1225–1274). Iniciemos pelo primeiro:
Para Aristóteles, uma vez que os argumentos e a persuasão moral não são suficientes para encorajar os homens a se tornarem virtuosos (que é o objetivo da comunidade política), a lei se torna um dos principais instrumentos para este objetivo; o uso da força é necessário para ordenar a comunidade quanto a estes que não se convenceriam por qualquer persuasão. Essa coerção, segundo o Estagirita, primeiramente impediria que os membros da comunidade se degradassem moralmente — ou seja, apenas impedem de fazer o mal — , e posteriormente, faria com que se tornassem mais dispostos a praticar a virtude. Ora, se a virtude é um hábito, segue-se que a repetição de atos bons tornam a pessoa mais bem disposta para pratica-los com mais facilidade; com a questão da proibição, a proibição de fazer o mau e o medo da punição fornecem uma razão para não agir daquela maneira e assim desarraigar aos poucos os vícios. Assim, a pólis deve encorajar o bem e a virtude moral, e a coerção política tem papel pedagógico para a educação moral — mas apesar disso, essa é uma lacuna de Aristóteles, que não considera que a coerção atinge apenas ao aspecto externo dos atos humanos, e não os internos, de onde o ato moral tem sua origem, e além disso superestima o papel pedagógico da pólis, não considerando o papel que as instituições menores (i.e. família, por exemplo) tem nessa educação moral.
Tomás de Aquino, como bom discípulo de Aristóteles, vê no homem uma aptidão natural para a virtude, e vê na lei como que um “treino”, uma disciplina para melhor praticar a virtude. Mas a finalidade da virtude é a beatitude perfeita, o Reino dos Céus, a contemplação divina, e por isso, o rei da comunidade política deve auxiliar a seus cidadãos a alcança-la, tornando-os bem dispostos à graça por meio da virtude. Essa educação pela lei deve ser gradual, e o Aquinate põe três estágios para que essa educação moral não seja pesada demais aos súditos por exigir elevados graus de moralidade de forma imediata: (i) primeiramente deve-se estabelecer a virtude, (ii) depois, preserva-la e por fim (iii) promove-la em graus mais perfeitos; toda essa pedagogia serve para que o vinho novo não seja posto em odres velhos que irão se partir por não serem capazes e nem estarem preparados para suportar um elevadíssimo critério moral. Em alguns casos,a lei humana pode até tolerar certos vícios em razão de juizos prudenciais (porque proibi-los traria mais malefícios do que benefícios), mas isso não significa que esse vicio se torne um “direito”. Essas considerações prudencias evitam alguns problemas como o abuso de poder, puritanismo moral, autoritarismo e intromissão da autoridade em todas as esferas da vida, preocupações desnecessárias quanto a vícios menos graves, etc.
Quanto à acusação de um moralismo autoritário, deve-se dizer que Tomás de Aquino era muito ciente de que nem todos os vícios devem ser proibidos por lei, mas apenas os mais graves, os que atentam diretamente contra o bem da comunidade politica. E a noção pedagógica da lei também revela que a lei não se torna educadora moral exclusiva que deve prescrever todas as virtudes, mas sim prescreve apenas aquelas virtudes relevantes para o bom convívio da comunidade politica. A lei não pode prescrever todas as virtudes, porque a lei cobre apenas o aspecto externo dos atos humanos, e a virtude é um ato que tem origem interna, numa decisão livre da vontade, de tal forma que se a lei obrigasse a dar esmolas, a dar presentes de aniversário, obrigasse a demonstrar gratidão, estes atos em pouco tempo deixarão de ser virtuosos, porque o elemento da livre tomada de decisão ao bem esta ausente. Todos os atos vão ser meramente externos, mas o aperfeiçoamento do sujeito moral não será atingido, pois a lei não toca nos atos internos da vontade — que estão sempre além da compulsão legal — , e por isso a contribuição da lei é sempre indireta.
Quanto ao argumento da neutralidade, para esta tradição é viciado por principio, uma vez que sempre fazemos opções morais, sempre temos alguma atitude quanto a moral, e a própria atitude pela neutralidade moral ja é uma escolha que relega a moral uma natureza e um papel bem especifico, e por isso, é uma opção moral. Mais do que isso, pode-se dizer que qualquer lei irá ou promover a virtude, ou facilitar o vicio (GEORGE, p. 36). Uma pessoa poderia dizer que não se pode impor uma moral especifica quanto à questão do aborto, por exemplo, e que se deve deixar o aborto como “direito”, uma vez que isso não é uma questão moral, mas de “saúde pública”; mas ora, a visão de que o embrião não é uma vida humana digna não é uma questão relevante em termos políticos, ja é uma opção moral carregada, qual seja, de que questões morais relevantes tem de ser decididas segundo critérios morais pragmatistas, estatísticos, e não segundo um critério personalista, por exemplo. A opção moral sempre será feita, e para cada visão política existe determinados pressupostos morais e antropológicos não explicitados.
Na questão do aborto,por exemplo, haverão aqueles que verão nos prejuízos econômicos ao Estado razão suficiente para permitir o aborto em prol do “bem comum econômico”; outros verão como legitimo o aborto sempre que uma pessoa perceber sua gestação como um impeditivo para o exercício de sua “liberdade”, e neste caso está pressuposto um critério liberal; outros verão como legítimo o aborto enquanto o ser humano em gestação não possui plenas capacidades de estados conscientes contínuos, e nisto vemos um pressuposto funcionalista; e assim vai…nunca há neutralidade, quanto aos pressupostos. Mesmo o positivista (não positivista jurídico, mas o positivista no sentido filosófico, comteano), que busca uma neutralidade quanto aos valores, fiando-se apenas nos “fatos empiricamente verificáveis”, possui pressupostos axiológicos e filosóficos que o levam a ter como premissa metodológica fundamental que a realidade empiricamente verificável é a única que existe ou a única segundo a qual não se pode ter enganos — e para que isto fique provado, é pressuposta toda uma cosmovisão filosófica materialista que não pode ser demonstrada por verificação empírica, senão que tem que ser filosoficamente pressuposta e defendida para que todas as afirmativas seguintes possam fazer sentido, isto é, esta metodologia não pode ser provada por ela mesma, mas exige uma fundamentação anterior que não é ela mesma empiricamente verificável.
Dessa forma, busca explicitar os pressupostos antropológicos e éticos das visões liberais, e vê que a exigência de neutralidade feita por alguns liberais é cheia de pressupostos moralmente carregados e não explicitados. E procura, a partir deste ponto inicial, mostrar o porque considera que a Tradição Central do Jusnaturalismo, de Aristóteles e Tomás de Aquino, possui respostas importantes para refletir estes problemas.
(Continua)
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