quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Conselhos de Hugo de São Vitor aos estudantes (Parte I)

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Quem quer que tenha lido bons livros sobre filosofia medieval, ou bons livros sobre história da educação, certamente já deve ter lido o nome de Hugo de Sao Vitor (1096-1141) entre um dos grandes - ou talvez até mesmo um dos maiores - educadores que o período medieval nos legou. E entre suas obras mais conhecidas, se destacam seu opúsculo "Sobre o Modo de Ler e Meditar" e o "Didascálicon - A Arte de Ler"; assim sendo, tentaremos neste post trazer algumas das principais recomendações do autor aos estudantes, considerando alguns métodos contemporâneos que o complementam de certa forma.

Para os leitores do mestre do mosteiro de São Vitor, algo que deve ter impressionado de inicio em sua obra é a brevidade de seus escritos. Recordo-me que quando tive em mãos o opúsculo "Sobre o Modo de Ler e Meditar" pela primeira vez, tive uma certa decepção ao ver que uma obra tão famosa e citada possuía apenas 8 páginas - o que me levou a perguntar-me se aquilo não era apenas um trecho de uma obra maior - e que ainda assim, eram ainda mais breves os capítulos e ao termino de cada um, sentia uma vontade de mais explicações, mais longas, mais elegantes estilisticamente, etc. Quando tive em mãos o "Didascálicon", fiquei animado por ser já um tratado que me parecia mais extenso, com vários livros dentro do tratado, com vários capítulos dentro de cada livro, e tudo o mais de me fez crer que seria a tão sonhada expansão do Opúsculo. Novamente, o que vi foram inúmeros capítulos de extensão de meia página à duas no máximo, que se por um lado ainda me deixava com uma certa "sede" de maiores explicações, trouxe ensinamentos que todo estudante poderia aproveitar. E este é o objetivo deste post.

Para aquele que busca se aperfeiçoar no estudo da sabedoria, é necessário que saiba três preceitos preliminares, e como "um pequeno erro no inicio leva a um grande erro no fim", é preciso bem considerar previamente (i) o que devemos ler, (ii) a ordem com que devemos ler e (iii) como devemos ler. Em primeiro lugar, a matéria do estudo, em segundo  a hierarquia entre essas matérias, distinguindo quais ciências pressupõe outras, quais são anteriores ou posteriores, quais são as partes subjetivas e potenciais de cada uma e de que forma estudar cada uma dessas ciências, distinguindo metodologias de investigação de acordo com a natureza de cada objeto de estudo e com subordinação dessas ciências.
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Poderíamos até mesmo adicionar - por nossa conta, não pelo texto explícito do mestre - um quarto conselho prévio, de natureza moral para o aprendiz. Primeiramente, ao considerar a condição humana, decaída, o amante da sabedoria busca com o auxilio divino reparar a semelhança divina (uma vez que somos Imago Dei); e dois são os exercícios que nos ajudam a este fim: (a) a investigação da verdade e (b) a prática das virtudes. E percebam que são duas dimensões que estão intimamente unidas, inseparáveis, uma vez que não pode ser verdadeiro amante da sabedoria aquele que contra esta mesma sabedoria pratica imoralidades, contra a reta razão e em última análise contra Aquele que é a Sabedoria mesma; por outro lado, só pratica as virtudes aquele que é de certo modo sábio, e tem sua alegria no agir conforme a razão, e que é - para usar termos mais precisos - prudente (virtude intelectual). Dessa forma, agir conforme a razão pressupõe uma certa virtude intelectual - prudencia - , que se dirige para a reta decisão segundo uma reta apreensão da realidade, e a reta apreensão da realidade por aquele que investiga a verdade, o leva a agir conforme a verdade apreendida, sendo sábio em suas considerações e decisões. É intima a relação entre a vida moral e intelectual, indistintas. E é precisamente esta verdade que o Pe. Antonin Sertillanges expressa em seu clássico A Vida Intelectual (É Realizações, 2010)
“A virtude não é a saúde da alma? E quem ousará dizer que a saúde não interfere em nada na visão? Perguntem ao oculista. Um clínico inteligente não se limita a medir a curvatura do cristalino e a escolher armações de óculos; (…)ele se preocupa com seu estado geral,com sua dentição ,com seu ritmo de vida, com suas vísceras. (…)
Como farão para pensar adequadamente com uma alma doente,com um coração triturado por vícios,dilacerado pelas paixões, desorientado por amores violentos ou culpados? Há um estado de lucidez e um estado de cegueira da alma,dizia Gratry,um estado são e,consequentemente, sensato, e um estado insensato. ‘O exercício das virtudes morais’,nos diz por sua vez Santo Tomás de Aquino, ‘virtudes pelas quais são refreadas as paixões ,importa sobremaneira à aquisição da ciência’ . (SERTILLANGES, 2010, p. 33)
O segundo pressuposto moral que poderíamos deduzir da obra de Hugo de São Vitor, é uma atitude profundamente apaixonada pela sabedoria e uma humildade realista de compreender que ela nunca será nesta vida plenamente alcançada. Saber que " a verdade total esconde-se de nós, porque quanto mais nosso espírito arda de amor, e quanto mais profunda se torne a busca pela verdade, mais difícil sua compreensão plena" (Didascálicon), e nisto consiste uma certa atitude tanto do filósofo quanto do teólogo - que em seu tempo não se distinguiam -, porque o coração destes tanto mais se inflama e quer buscar a Verdade amada quanto mais lhe é difícil compreender.

As pequenas verdades investigadas e conhecidas inflamam o coração para que saiba que ainda muito resta a conhecer, e mesmo este muito não será plenamente conhecido. E aqui, o perfeito filósofo - que é, como sempre se repete, um teófilo, alguém que ama a Deus - chega a um ponto central, que foi perfeitamente percebido por Santo Tomás de Aquino em um dos pontos que podemos dizer "quase místico" de sua obra, no qual explica sobre a hierarquia entre intelecto e vontade: quando o objeto do conhecimento é muito nobre, mais vale ama-lo do que conhecê-lo, mas quando o objeto não é tão nobre, mais vale conhecê-lo do que ama-lo. O Aquinate diz:
Quando a coisa na qual está o bem é mais nobre que a própria alma em que se encontra a razão dessa coisa então relativamente a essa coisa, a vontade é superior ao intelecto. Quando, porém, a coisa na qual está o bem é inferior à alma, então relativamente, também, a essa coisa, o intelecto é superior à vontade. Por isso, é melhor amar a Deus do que conhecê-Lo, e inversamente vale mais conhecer as coisas materiais do que ama-las." (Summa Theol. I, Q. 83, art. 3, respondeo)
Dessa forma, quando se chega ao ponto em que vê a vastidão da verdade que supera nosso entendimento, a atitude devida é o amor. E mais ainda, quando se percebe que há uma Verdade Encarnada, Pessoa, pela qual todas as coisas foram feitas (São João, capitulo 1), é mais nobre que nos prostremos em adoração e amor do que busquemos disseca-la tal como um sapo de laboratório. Esta é a atitude do sábio, que vê no amor a resposta adequada a esta Verdade que supera infinitamente sua capacidade de entendimento, mas que ao mesmo tempo, pela graça batismal habita no mais íntimo do seu íntimo (intimior intimo meo).

Essa atitude inicial do filósofo perante à realidade é de certa forma uma atitude religiosa, uma atitude que passando do conhecimento das realidades naturais, busca alcançar as sobrenaturais, buscando as verdades que passam, alcançar as que não passam, compreendendo com S. Tomás que o conhecimento é causa do amor e que à Verdade que nos supera infinitamente a atitude adequada é o amor e o temor de Deus, que princípio da Sabedoria (Prov. 9,10).

Passando desses dois pressupostos morais ao estudo da filosofia - que não estão expostos desta forma em seus escritos, passemos ao estudo das diversas ciências segundo os 3 preceitos prévios para a leitura (os preceitos morais não estão incluídos textualmente como anteriores, mas o que fizemos foi uma reconstrução a partir de outras partes de seus escritos). E como precisamos em primeiro considerar os objetos do estudo, i.e. o que iremos estudar, é necessário antes distinguir as ciências. A divisão inicial seria quadripartite, sendo a ciencia (filosofia) dividida em (1) Teórica, (2) Prática, (3) Mecânica e (4) Lógica.

A ordem do estudo dessas ciências, tem por inicio a (4) Lógica, que segundo o autor, é "a última no tempo, mas a primeira na ordem do estudo". Para os acostumados com o que chamamos de Educação Clássica ou Liberal que a Lógica seja a primeira na fila não é estranho, e de fato, o programa de estudos das 7 Artes Liberais inicia-se com o Trivium, que prepara a inteligência do estudante para os estudos mais avançados. A Lógica por sua vez possui 3 partes: (a) Gramática,  (b) Dialética e (c) Retórica; esta parte inicial é pressuposta e sustenta os estudos posteriores. Por acaso pode o estudante compreender a Teologia, Filosofia Natural, a Matemática, por exemplo, sem saber como formular um texto estruturalmente coeso segundo letra, sílaba, palavra e frase (gramática)? Ou sem saber distinguir entre uma falácia e um argumento validamente construído segundo uma demonstração por necessidade, ou por probabilidade (Dialética)? ou sem saber expressar os conteúdos mentais de forma coerente, válida e convincente para os que os escutam (retórica)? Essas disciplinas seriam então propedêuticas, apesar de serem as últimas no tempo, segundo o autor, uma vez que a análise lógica do conteúdo de um discurso sempre se dá após a consideração do seus conteúdos e argumentos.

"As sete artes são como instrumentos e treinamentos, pelos quais se prepara uum caminho para o espírito alcançar o conhecimento da verdade."
"O fundamento de toda a doutrina se encontra nas sete artes."
(Hugo de São Vitor - Didascálicon: A Arte de Ler) 
A segunda na ordem das ciências é a (1) Teórica, que por sua vez, se divide em (a) Intelectível, (b) Inteligível e (c) Natural. A intelectível é a Teologia, que é divina; a inteligível é a matemática; e a natural, a física (considerada aqui como fisiologia). É interessante que, dentro da Matemática, é feita 4 subdivisões: Aritimética, Musica, Geometria e Astronomia; à Musica pode ser do mundo - o movimento do mundo como harmonia musical a ser regida pelo Maestro Divino -, dos homens e dos instrumentos - feitos pelos homens; já a geometria se divide em altimetria, planimetria ou cosmometria; e a Astronomia é como que um complemento da Geometria e vice versa, uma vez que a primeira considera os entes enquanto tem movimento, e a segunda enquanto são imóveis. Vale também pontuar que Astronomia aqui distingue-se de Astrologia, uma vez que a primeira estuda a lei dos astros enquanto são moventes (astros-nomos), e a segunda estuda o "discurso dito pelos astros", podendo ser subdividida em supersticiosa - que vê nos astros uma influencia nas coisas contingentes e no livre arbítrio -, e natural - que estuda a composição dos corpos e sua moderação pelos corpos superiores quanto à saúde, fertilidade, etc.

A terceira na ordem das ciências é a (2) Filosofia Prática, que por sua vez se divide em (a) Solitária - diz respeito aos indivíduos - ética e moral; (b) Privada - diz respeito aos pais de familia e se divide em econômica e administrativa; (c) Pública, que diz respeito àqueles que são administradores da cidade, e se divide em civil e política. A ordem dos indivíduos entre si precede o estudo da ordem deles enquanto sujeitos a autoridade familiar, e a ordem familiar precede à ordem pública e esta última tem apenas caráter subsidiário sobre a família.

A quarta e última ordem, a (3) Mecânica, se divide na produção de (a) elementos internos e (b) elementos externos. Pouco se tem a falar desta.
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Após responder as perguntas acerca do que deve se ler e da ordem das leituras, passemos ao terceiro e último preceito: Como devemos ler?

Hugo de São Vitor inicia a resposta pontuando três coisas necessárias ao estudo: (i) a natureza, (ii) o exercício e a (iii) disciplina. Aos nossos ouvidos contemporâneos parece absurdo afirmar algo tão obvio: nem todos tem a mesma disposição para os estudos, e as disposições naturais de uns são mais favoráveis à vida intelectual que a de outros; isto não quer dizer que os intelectuais são mais dignos em absoluto do que os homens simples, mas sim que possuem talentos diferentes que devem frutificar, à medida de suas capacidades, e por isso assim como para atividades artísticas uma certa sensibilidade estética é exigida, nas atividades intelectuais uma certa capacidade intelectual e discursiva mais acurada é exigida.

Em outras palavras, a vida intelectual como tal é uma vocação (e assim é tratada no clássico de A.D Sertillanges), e esta característica de chamado (vocare) pressupõe também que Aquele que chama dispôs-nos para aquilo para que nos chama - "a Graça não tolhe a natureza, mas a supõe e aperfeiçoa". Esta realidade foi magnificamente exposta por Dante Alighieri em sua Divina Comédia (Editora 34,2014) quando diz em seus versos:
Sempre Natura, se a si desafeito                                                                                           ambiente encontra, tão como semente                                                                                 fora de sua região, tem mau proveito.
Se o mundo, embaixo lá, pusesse a mente                                                                            na, que Natura deu, distribuição,                                                                                        e a acompanhasse, boa seria a sua gente;                                                                           
mas vós torceis para a religião                                                                                              um que nasceu para se cingir da espada,                                                                            e tornais rei quem apto é pra sermão;
e é o nosso rumo assim fora da estrada
(Paraíso, Canto VIII, 139-148) 
Mas além da natureza, das disposições naturais e gosto pelo estudo e pelo labor intelectual, é necessário o exercício. É preciso que exercitemos as nossas disposições naturais para o seu melhor desempenho, e não faze-lo seria o equivalente à parábola evangélica do empregado que enterrou os seus talentos; de fato, não adiantaria de nada a boa disposição da natureza, se o homem não exercita e aperfeiçoa seus talentos, se é preguiçoso e disperso, se é cheio de paixões baixas que não luta para vencer. É preciso exercitar-se na atividade intelectual.

Por fim, a disciplina é necessária ao estudo, sendo considerada como a conjunção perfeita entre os bons costumes e o conhecimento. O homem disciplinado, sendo preso a uma rotina com disciplina rigorosa, se torna o homem mais livre para o exercício de suas atividades com excelência. O desordenado, o indisciplinado, este sim, com sua "liberdade" é escravo das contingencias, imprevistos e desordens nos estudos. A virtude da ordem, da disciplina, é a virtude da liberdade.

Tanto a o exercício quanto a disciplina podem ser entendidos também sob uma clave moral, uma vez que a disciplina também tem de ser das paixões e dos sentidos, ordenando-os numa harmonia interior que não os faz dispersar do trabalho intelectual. A antropologia realista de S. Tomás de Aquino mostra essa realidade muito claramente: ora, se o conhecimento inicia-se nos sentidos, e portanto, a dimensão corpórea está substancialmente à dimensão intelectual/anímica (anima forma corporis), então qualquer defeito ou sensibilidade desordenada há de ser um obstáculo grande na percepção da realidade; mais uma vez aqui se mostra a maneira íntima em com a qual estão unidas a vida moral e intelectual. Essa ligação entre antropologia/psicologia e vida intelectual será melhor investigada nas próximas postagens.


(Na próxima parte, aprofundaremos o estudo dos conselhos mais particulares, que podem ser úteis para o melhor aproveitamento das leituras, anotações e exposições. Continua....)

Estudos da Suma Teológica - Os Atos Humanos: Sua Natureza, Estrutura e Dinamismo - Parte I (I-IIae, Q. 6-17)

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Q. 6.: O Voluntário e o involuntário

  • O voluntário se encontra nos atos humanos: contém em si seu principio de movimento e o conhecimento do fim.
  • Os animais possuem um voluntário imperfeito: só apreende o fim, não a razão do fim, e nem a proporção do fim.
  • O voluntário pode existir sem ato: querer, não querer.
  • A vontade não pode sofrer violência.
  • A violência causa o involuntário, pois se opõe diretamente ao voluntário.
  • O medo não causa o involuntário de modo absoluto.
  • A concupiscência não causa o involuntário. 
  • Nem toda ignorância causa o involuntário. Existem tres tipos de ignorância:
    • Por concomitância: acompanha a ação sem a influenciar
    • Por consequência: é causada por um ato de vontade
    • Por antecedência: se quer porque se ignora.
Q.7:Circunstância dos atos humanos
  • É um acidente do ato humano.
  • As principais são "por quê" e "o que se faz".
Q. 8: A vontade e seu objeto.
  • A vontade é somente do bem. Tudo aquilo que é apreendido in ratione boni.
  • A vontade é do fim e daquilo que é para o fim.
Q.9.: O que move a vontade
  • O intelecto, o apetite sentitivo, ela mesma, principio exterior (ex: objeto), Deus.
Q.10.: O modo de mover-se da vontade
  • Naturalmente (ao bem universal).
Q. 11: A fruição, que é ato da vontade; 
  • Santo Agostinho: "Fruir e ligar-se amorosamente a alguma coisa por si mesma."
  • Fruir é ato da potência apetitiva.
  • As criaturas irracionais, o frui é imperfeito.
  • A fruição é só do Fim último (em seu sentido próprio) - simpliciter. Mas dos fins relativamente últimos, a fruição pode ser dita secundum quid.
  • Há fruição tanto no fim possuido, quanto no fim não possuido (imperfeitamente).
Q. 12.: A intenção - e seu objeto (a.1-2), seu ato (a.3-4), e se há nos irracionais (a.5).
  • É ato da vontade - tender para alguma coisa - relativamente ao fim; isso pode ser de 3 modos: (i) absolutamente - vontade -, (ii) enquanto nele repousa - fruição -, (iii) enquanto este é o termo de algo ordenado para ele - intenção.
  • Não é somente do Último Fim, mas o fim enquanto é termo do movimento da vontade.
  • Definição: "ato da vontade incidindo sobre o seu fim, fim último, primeiramente, fim intermediário depois."
  • Pode-se, ao mesmo tempo, ter intenção do fim próximo e do fim último, como elaborar o remédio e a cura.
  • Um só movimento é a intençao do fim e a vontade do que é para o fim.
  • Não há intencionalidade propriamente dita nos animais, uma vez que não tem intenção do fim.
Q.13.: A eleição do que é para o fim pela vontade.
  • É ato da vontade, da potência apetitiva, pois termina no movimento da alma para o bem que escolheu. Mas é a razão que lhe dá a forma. Íntima ligação.
  • Não convém aos animais, que não tem vontade, que é substancia da eleição. O apetite sensivel por si não é capaz de eleger.
  • Eleição é como conclusão do silogismo prático. 
  • O fim enquanto fim não é objeto de eleição.
  • A eleição é sempre dos atos humanos, não do fim; somente de coisas possiveis.
  • A eleição do que é para o fim é livre; a eleição do fim, não: se dá necessáriamente (a beatitude)
Q.14.: A deliberação (consilio), que precede a eleição.
  • A deliberação é do que é para o fim.
  • Investigação, conselho (consilio); implica comparação feita entre muitas coisas. 
  • A deliberação tem por objeto nossas ações.
Q.15: O consentimento (consensu), que é ato da vontade, comparado com aquilo que é para o fim.
  • É ato da potencia apetitiva.
  • Implica a aplicação do sentido a algum objeto.
  • Designa a aplicação do movimento apetitivo a alguma coisa ja existente no poder de quem a aplica.
  • Ordem operativa: apreender o fim→apetite do fim→deliberação das coisas que são para o fim→apetite das coisas que são para o fim.
  • A aplicação do movimento apetitivo à determinação da deliberação é propriamente o consentimento.
Q. 16: O uso, que é ato da vontade, comparado com as coisas que são para o fim.
  • Santo Agostinho> "Usar é assumir algo pela potencia da vontade."
  • O uso de uma coisa implica sua aplicação a uma ação.
  • Fruir é melhor que usar; porque aquilo que é absolutamente apetecível é melhor do que é apetecível relativamente a outro.
  • Não se usa o Último Fim, se frui Dele.
  • O uso segue-se à eleição.
Q.17.: Os atos imperados pela vontade.
  • Imperar é próprio da razão. Impera sobre a vontade absolutamente: isto é para ser feito [hoc est faciendum]; intimação: faz isto [fac hoc].
  • Imperar é ato da razão, pressuposto o ato da vontade em virtude do qual a razão move por império para o exercício do ato.
  • O império precede o uso enquanto esta na razão que o refere ao fim. Mas o uso daquele que é para o fim, enquanto esta sujeito a uma potência executiva, segue-se ao império.
  • O ato da vontade e o ato da razão são imperados, os movimentos do corpo e o apetite sensitivo também. Só os da potência vegetativa não são.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O que é ser pessoa? Algumas formulações da "antropologia apofática" de Robert Spaemann

Este pequeno ensaio é uma homenagem ao grande filósofo alemão Robert Spaemann, falecido no dia 11/12/2018, que teve uma obra vasta e importante para a filosofia contemporânea. Conheci sua obra a partir de uma pesquisa que iniciei ano passado no Grupo de Pesquisa "Tradição da Lei Natural" na linha de "Bioética, Lei Natural e Direito à Vida", e quando tive em mãos pela primeira vez o livro que iremos comentar aqui, minhas impressões sobre o autor não foram as melhores: sua escrita parecia confusa, desordenada, dispersa, e muitas outras características que me fizeram desistir de ler na metade, sem conseguir tirar lição substancial alguma. Até que um dia tive em mãos uma dissertação de Matthew A. Schimpf, cujo nome era "The Theory of Person in Robert Spaemann's Ethical Assentiments", que foi capaz de sistematizar as formulações do livro do autor e que me fez redescobrir sua obra e compreender sua grandeza e profundidade. Depois dessa leitura, tudo o que vem do Spaemann parece ser uma oportunidade de aprofundamento; se tornou um dos autores indispensáveis ao estudo.
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No livro relativamente denso e complexo do autor, Pessoas: Ensaios sobre a Diferença entre Algo e Alguém (UNISINOS, 2015), ele busca responder a pergunta: o que significa ser "pessoa"? A qual realidade este termo remete? E se remete a alguma realidade, esta realidade é uma realidade objetivamente constatada e experimentada, ou é subjetivamente construída ou aferida?

Entre as diversas abordagens sobre o tema, é clássica a genealogia do conceito de pessoa que parte dos gregos e suas peças teatrais (prosópon), passando pelo uso jurídico da civilística romana (persona), até chegar a reflexão da teologia católica do Concílio de Niceia e Constantinopla, que reafirmaram a Natureza Divina de Cristo e formularam de forma mais precisa a realidade fundamental da Fé Católica: a Doutrina da Trindade.  Nesta abordagem teológica, se explica por meio deste termo de que forma Deus pode ser Uno, e ao mesmo tempo três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, e como são realmente distintos, ainda que sejam da mesma natureza, Deus.

O ponto central para o conceito de pessoa, tal como conhecemos hoje, se deu a partir da formulação de Severino Boécio, que ao tratar do mesmo tema - i.e. natureza divina - , formula que pessoa é "substantia individualis naturae rationalis" , e dá à sua definição um substrato ontológico bem preciso, que será aprofundado na reflexão posterior. Ja Ricardo de São Vitor, complementa a definição a partir da substituição da palavra "substantia" para "existentia", na qual vê que a realidade à qual nos referimos ao dizer "pessoa", é muito melhor descrita ao falar não da natureza racional abstrata, mas sim da realização existencial individual dessa natureza, daquele que subsiste nesta natureza.

Tomás de Aquino, também segue a definição de Boécio e fornece em seu Tratado do Homem (I, Q. 75-87) um aprofundamento na constituição anímico corpórea do ser humano, como animal racional, e como distinto e elevado com uma eminencia superior à do resto da criação por sua capacidade de atividades que superam muito a matéria corporal (como as atividades intelectuais, a possibilidade de conhecer a Deus, etc), e por seu destino sobrenatural. E por aqui, já se desenha aos poucos um sentido que vai além de um simples status ontológico, mas traz também um sentido axiológico: pessoa não designa simplesmente uma realização existencial de uma natureza racional, mas se compreende que por essa eminencia na ordem do ser, este termo é também um nomen dignitatis, um termo que remete a uma dignidade que as pessoas tem.

Considerando também a linguagem ordinária, percebe-se que este termo remete a esta dignidade. Aqueles a quem chamamos de "pessoas" são dignos de um certo tratamento que é uma resposta adequada ao seu valor de realidade pessoal. Não é estranho quando dizem : "não trate ele assim, pois ele é uma pessoa", e parece que o sentido da frase não seria o mesmo caso substituíssemos "pessoa" por "homo sapiens"; e dessa forma, a linguagem comum nos atesta estes dois aspectos objetivos da realidade pessoal: ontológico e axiológico.

Se por um lado é verdade que estas formulações objetivas nos livram de cair em um subjetivismo ou arbitrariedade quanto às pessoas, por outro lado não são capazes de expressar a realidade de sujeito, a perspectiva subjetiva das pessoas. A perspectiva personalista de matriz tomista, que tem Robert Spaemann como um de seus maiores expoentes - juntamente com Karol Wojtyla, Dietrich von Hildebrand, Gabriel Marcel, Elio Sgreccia -, busca fazer uma síntese entre a filosofia do ser de Tomás de Aquino (aspecto objetivo) e a filosofia da consciência de influência de Edmund Husserl (subjetividade - não subjetivista), e apresentar a pessoa não apenas em seu aspecto objetivo, a partir da perspectiva de terceira pessoa, mas também considerando o aspecto do sujeito em primeira pessoa (obviamente, com o substrato ontológico de matriz realista da filosofia tomista).

Por não tratar a pessoa apenas sobre este aspecto do observador, mas complementando este aspecto com o aspecto subjetivo, Spaemann acaba por criar várias formulações de aspectos da pessoa humana, que, ao invés de consistirem em descrições positivas sobre a natureza humana e seu caráter pessoal, parte de uma descrição antropológica que alguns de seus comentadores chamam de "antropologia apofática", relacionando este método com a reflexão da teologia apofática, formulada por Pseudo- Dionísio Areopagíta, que afirma que de Deus não podemos dizer o que Ele é, mas somente o que Ele não é. Isto é, mais preciso seria dizer que Deus é a-temporal, sem limitação nenhuma a seu poder, imortal, e outros adjetivos que se referem mais à formulações negativas do que positivas.

Se por um lado, o método do Pseudo Dionísio se fundava na incapacidade de apreensão da essência divina, o método de Spaemann não tem esta mesma justificativa. Mas Spaemann vê na realidade pessoal uma eminência que não pode ser apreendida simplemente como um experimento empírico de laboratório; pelo contrário, a pessoa é tão eminente, que sua formulação pode explicitar o quanto a pessoa não se reduz à sua natureza da mesma forma que os outros seres vivos se reduzem.

Dizemos ser pessoas aqueles que, subsistindo em uma natureza racional, são capazes de transcende-la de certa forma, de auto-transcendência. Essa auto-transcendência é formulada nos termos de (i) Descentramento, (ii) Negatividade. Esses termos, que expressam mais uma negação ( des- centramento; negatividade) são o "elemento apofático" da antropologia personalista do autor.

Em primeiro lugar, a capacidade de descentramento mostra que a pessoa é capaz de distanciar-se de suas paixões, intenções, desejos, etc. Ainda que esteja de certa forma sujeito a eles, é capaz de manter uma distancia como um observador em terceira pessoa, de relativizar a si mesmo, de analisar-se e colocar-se como fenômeno; esta capacidade de objetivação e auto-relativização revela a importante distinção que se deve fazer entre pessoa e sua natureza. Talvez por essa razão teremos de concordar com a formulação de Ricardo de São Vitor, que ao falar em "existentia" é capaz de explicar essa realidade da realização individual da natureza racional, que talvez a palavra "substantia" de Boécio poderia obscurecer, caso fosse considerada como tradução de "Physis" ou "ousia", que seria o equivalente à falar em natureza ou substancia. Essa capacidade de distanciamento pressupõe uma diferenciação interior do ser humano em relação a si mesmo, e esta diferenciação é consciente nos seres humanos, e não o é nos outros animais. Spaemann explica que,
[f]alando de si mesmo na terceira pessoa, o ser humano abandona a posição central que todo ser vivo natural assume na relação com seu ambiente e através dos olhos dos outros se vê  como um acontecimento no mundo. Para ver-se desse modo, ele precisa assumir um ponto de visa fora de si mesmo, fora de seu centro orgânico. A moralidade só é possivel com base nessa capacidade de auto-objetivação e, desse modo, de auto-relativização. (SPAEMANN, 2015, p.20)
Em segundo lugar, a segunda formulação foi a partir da negatividade. Ele inicia seu capitulo 4 com as seguintes afirmações:
Pessoas não são simplesmente o que são. Elas são determinadas por uma diferença em relação ao que são, por um momento de negatividade. A negatividade diferencia o existente vivo do existente não vivo. Na pessoa, ela experimenta sua intensificação máxima. (SPAEMANN, 2015,p.  39)
A negatividade está ligada à formulação da auto-transcendência. E significa que as pessoas não estão presas a um determinismo de natureza, e que podem de certa forma transcende-la, uma vez que - como ja foi dito -, pessoa não é tanto a natureza racional abstratamente considerada, mas sim um modo especifico das naturezas racionais se concretizarem individualmente - como Ricardo de São Vitor diria, um modus existentiae. Essa negatividade em relação ao que são - isto é, sua natureza - se dá uma vez que consideramos que as pessoas não são sua natureza, mas "tem" sua natureza. Podemos dizer então que
[n]o conceito de pessoa, concebe-se um ser original próprio ainda mais original do individuo particular. Não é como se tais indivíduos não tivessem natureza e tivessem de decidir por si mesmos o que eles são. Mas eles podem adotar um comportamento a mais em relação a essa sua natureza. Eles podem se apropriar de suas leis essenciais em liberdade ou transgredi-las e 'ficar desnaturados'. Por essa razão, enquanto entes pensantes eles podem ser denominados não só como pertencentes à sua espécie, mas também como indivíduos que 'existem em tal natureza'. Isso quer dizer: eles existem como pessoas. (SPAEMANN, 2015, p. 33)
A terceira formulação, seria a da auto-transcendência em termos positivos. Ja vimos que as formulações negativas são como que um elemento apofático que nos ajuda a distinguir as pessoas do mundo das coisas que simplesmente são. Essa terceira formulação, certamente já de certo modo tratada nas duas formulações anteriores, é a liberdade da pessoa em relação à sua natureza. Com o que ja ficou dito, a pessoa é um modo de existir em uma essência racional, e não essa natureza racional mesma, e isto quer dizer que a pessoa não se reduz aos seus atributos, mas de certa forma os possui. Possuir é próprio das pessoas, mas ser possuído é próprio das coisa.

Dois esclarecimentos são necessários prevendo duas possíveis objeções. A primeira, poderia ser de que Spaemann formula uma teoria dualista que hipostasia o self que "dirige" a natureza como se fosse um instrumento da pessoa, e que desconsidera a importância constitutiva da natureza para a pessoa; a segunda objeção possível seria de que, ao formular que a pessoa "possui" uma natureza e possui uma liberdade em relação a ela, Spaemann estaria defendendo uma tese que poderia ser formulada para defender várias teses desconstrucionistas, anti-metafísicas, etc, como se a pessoa pudesse desconstruir sua natureza racional como se ela fosse mero elemento acidental à ela.

A primeira e a segunda objeção poderiam ser respondidas ao explicar que, quando se fala em auto-transcendência e suas formulações, se busca não apenas fazer uma descrição ontológica da natureza humana da mesma maneira que se descreve a natureza de um sapo, por exemplo. Aqui se quer apenas dizer que, ainda que seja verdade que o ser humano é de certa forma sua natureza (por ser a realização individual de uma natureza racional), e que ele é por natureza um ente corporal, e que essa dimensão corporal é essencial e manifesta a pessoa - e manifestando o interior, a dimensão exterior é parte constitutiva da pessoa -, a pessoa de certo modo é capaz de atitudes que são inexplicáveis sem o recurso das formulações negativas e da auto-transcendência. É impossível explicar por meio do simples recurso à natureza o auto-sacrifício ou do martírio, ou mesmo a capacidade de perdoar ou prometer, a possibilidade das maiores crueldades e ao mesmo tempo a possibilidade de ser virtuoso - e em última análise, um santo. Se quer apenas dizer que a ação pessoal não é determinada por fatores da natureza de forma tão definitiva que não possa ser elevada pela pessoa humana. Viktor Frankl (1905-1997) experimentou essa capacidade humana única de elevar-se e rebaixar-se, que não pode simplesmente ser descrita como consequências causalmente determinadas por determinada circunstância. Ele diz sobre sua experiencia no campo de concentração:
Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-Nosso ou o Shemá Yisrael. (FRANKL, 2011, p. 176)
Há portanto, um certo núcleo pessoal que está livre dos determinismos circunstanciais e mantem uma certa liberdade até com suas próprias disposições naturais.

Esta não é uma exposição exaustiva das formulações de Robert Spaemann, mas apenas uma tentativa de sistematizar o que as vezes parece confuso em sua obra e suas formulações. De certa forma, essas formulações por vezes imprecisas dão margem para incompreensões e críticas muitas vezes infundadas. Mas que este pequeno texto possa ter sido útil para os que procuram se aventurar na obra deste grande filósofo e descobrir algumas características que distinguem "algo" de "alguém" .
  

 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Estudos da SumaTeológica - Os Atos Humanos (I-IIae, Q. 18-21) - Parte II

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Q. 18.: A bondade e a malícia dos atos humanos em geral
  • A ação recebe do objeto sua espécie. Tem sua bondade ou malícia determinada por seu objeto.
  • O primeiro mal nas ações morais é o que procede do objeto.
  • As circunstâncias são determinadas também na bondade e na malícia dos atos humanos. Poderia se objetar que elas são acidentes, mas se o são, são acidentes próprios, e por isso determinantes.
  • A bondade ou malícia é boa ou má por seu fim.
  • Quatro modo de bondade da ação (Q. 18, Art. 4, respondeo)
    • Segundo o gênero: enquanto é ação - e quanto esta tem de entidade, tem de bondade.
    • Segundo a espécie: se torna em conformidade com o objeto comveniente;
    • Segundo as circunstâncias: tidas como acidentes [próprios].
    • Segundo o fim: conforme sua relação com a causa da bondade 
  • A bondade ou maldade de um ato, considerando o objeto, se diz em comparação com a razão, que considera se o objeto é ou não conveniente. A espécie de bem ou mal em relação ao objeto se diz em comparação com a razão.
  • O fim diversifica a espécie dos atos.
  • O ato voluntário interior tem por objeto o fim - formalmente; ja o ato voluntário exterior, tem o objeto acerca do qual versa - materialmente.
  • "A espécie de um ato humano se considera formalmente segundo o fim, e materialmente segundo o objeto."
  • "A vontade, pois, cujo objeto próprio é o fim, é movente universal de todas as potências da alma, cujos objetos próprios são os objetos dos atos particulares." (Q. 18, art. 7, resp. ad 2am)
  • A circunstância constitui o ato moral na espécie de bem ou de mal. Ex: circunstância do lugar→o mesmo ato de roubar pode mudar de espécie segundo a circunstância; roubar uma casa é uma coisa (roubo simplesmente), mas roubar uma Igreja é sacrilégio.
  • Nem toda circunstância diversifica a espécie de bom ou mau no ato moral; as vezes só agrava ou diminui a gravidade.
Q.19.: A bondade e malícia do ato interior da vontade.
  • Ato interior emana da vontade sob forma de (i) intenção e (ii) escolha, cujo objeto próprio é o fim.
  • A bondade da vontade depende de que alguém queira o bem. Assim, pertence à vontade.
  • A bondade ou malícia dos atos da vontade dependem só do objeto.
  • A bondade da vontade depende de estar submetida à razão (lei natural).
  • A vontade que discorda da razão errônea é má, uma vez que é contra a consciência (a.5,sed contra) - que é a aplicação da ciencia a um ato. A vontade que concorda com a razão errônea pode ser má.
  • A bondade da vontade depende da intenção do fim.
  • Intenção e vontade (art. 7): 
    • (i) antecedente: intenção é anterior como causa.
    • (ii) concomitante: se acrescenta a uma vontade preexistente anterior.  
  • A intenção pode ser boa e a vontade ser ruim. 
  • A bondade da ação humana deve se conformar com a divina. Ora, se a bondade do ato depende da intenção do fim, e o fim último da ação humana é o sumo bem, então a vontade deve se ordenar ao Sumo Bem, Deus. (art. 9, resp)
  • Conformidade com a vontade divina pode ser (i) formal ou (ii) material. Deve-se ter não tanto a material, mas a moral (formal).
Q.20.: Bondade e malícia dos atos humanos exteriores.
  • O bem e o mau moral estão primeiro no ato da vontade, e depois no ato exterior, quanto à execução da obra.
  • O ato exterior acrescenta bondade ou malicia ao ato interior.
  • A bondade da obra se verifica pela (i) matéria, (ii) circunstância e (iii) fim. O (i) e (ii) são próprios da razão, o (iii) é próprio da vontade.
Q. 21: Consequências dos atos humanos em razão da bondade e malícia.
  • Retidão e pecado.
  • Louvável e culpável.
  • Mérito e demérito.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A Tradição Central do Jusnaturalismo e o papel da Lei segundo Robert P. George

Uma das principais questões levantadas nas discussões politicas contemporâneas é a inserção de argumentos morais dentro do debate público acerca da legislação.

A crítica liberal vê essa inserção como algo nocivo, como algo que moraliza a politica e que é em si algo injusto, uma vez que para os liberais a moralidade é algo pessoal, subjetivo ou pelo menos algo que pertence à esfera privada e deve ser circunscrita nesta. Ou seja, leis que buscam reforçar a moralidade pública são per se injustas. Nesse sentido, as questões politicas e legislativas deveriam ter sua resolução regida pelo principio de neutralidade, que permite com que pessoas que tem visões morais distintas (uma vez que para estes isso é algo meramente subjetivo e privado) possam debater esses temas.

No livro Making Man Moral,Robert P. George busca se contrapor a essa tese liberal em suas várias versões, e sustentar que (i) a consideração de critérios morais para decisões politicas e legislativas são per se válidas ,(ii) a neutralidade a respeito da moral não é possível e (iii) a lei possui um papel pedagógico importante (apesar de não ser primário) para a formação moral dos indivíduos — e que não é possível ser neutro quanto a isto.
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O primeiro argumento contra a tese de George diz que o perfeccionismo exigido pela tradição central do pensamento ocidental é inconsistente com a liberdade, que a imposição de um padrão moral implica numa supressão da liberdade em suas mais diversas formas, e que por isso é incompatível com as democracias liberais contemporâneas. Como se a inserção de qualquer argumento moral dentro da lei fosse um “moralismo autoritário”.
Sobre o que ele chama de “Tradição Central do Pensamento Ocidental”, pode-se tomar como exemplares Aristóteles (384–322 a.C) e Santo Tomás de Aquino (1225–1274). Iniciemos pelo primeiro:

Para Aristóteles, uma vez que os argumentos e a persuasão moral não são suficientes para encorajar os homens a se tornarem virtuosos (que é o objetivo da comunidade política), a lei se torna um dos principais instrumentos para este objetivo; o uso da força é necessário para ordenar a comunidade quanto a estes que não se convenceriam por qualquer persuasão. Essa coerção, segundo o Estagirita, primeiramente impediria que os membros da comunidade se degradassem moralmente — ou seja, apenas impedem de fazer o mal — , e posteriormente, faria com que se tornassem mais dispostos a praticar a virtude. Ora, se a virtude é um hábito, segue-se que a repetição de atos bons tornam a pessoa mais bem disposta para pratica-los com mais facilidade; com a questão da proibição, a proibição de fazer o mau e o medo da punição fornecem uma razão para não agir daquela maneira e assim desarraigar aos poucos os vícios. Assim, a pólis deve encorajar o bem e a virtude moral, e a coerção política tem papel pedagógico para a educação moral — mas apesar disso, essa é uma lacuna de Aristóteles, que não considera que a coerção atinge apenas ao aspecto externo dos atos humanos, e não os internos, de onde o ato moral tem sua origem, e além disso superestima o papel pedagógico da pólis, não considerando o papel que as instituições menores (i.e. família, por exemplo) tem nessa educação moral.
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Tomás de Aquino, como bom discípulo de Aristóteles, vê no homem uma aptidão natural para a virtude, e vê na lei como que um “treino”, uma disciplina para melhor praticar a virtude. Mas a finalidade da virtude é a beatitude perfeita, o Reino dos Céus, a contemplação divina, e por isso, o rei da comunidade política deve auxiliar a seus cidadãos a alcança-la, tornando-os bem dispostos à graça por meio da virtude. Essa educação pela lei deve ser gradual, e o Aquinate põe três estágios para que essa educação moral não seja pesada demais aos súditos por exigir elevados graus de moralidade de forma imediata: (i) primeiramente deve-se estabelecer a virtude, (ii) depois, preserva-la e por fim (iii) promove-la em graus mais perfeitos; toda essa pedagogia serve para que o vinho novo não seja posto em odres velhos que irão se partir por não serem capazes e nem estarem preparados para suportar um elevadíssimo critério moral. Em alguns casos,a lei humana pode até tolerar certos vícios em razão de juizos prudenciais (porque proibi-los traria mais malefícios do que benefícios), mas isso não significa que esse vicio se torne um “direito”. Essas considerações prudencias evitam alguns problemas como o abuso de poder, puritanismo moral, autoritarismo e intromissão da autoridade em todas as esferas da vida, preocupações desnecessárias quanto a vícios menos graves, etc.
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Quanto à acusação de um moralismo autoritário, deve-se dizer que Tomás de Aquino era muito ciente de que nem todos os vícios devem ser proibidos por lei, mas apenas os mais graves, os que atentam diretamente contra o bem da comunidade politica. E a noção pedagógica da lei também revela que a lei não se torna educadora moral exclusiva que deve prescrever todas as virtudes, mas sim prescreve apenas aquelas virtudes relevantes para o bom convívio da comunidade politica. A lei não pode prescrever todas as virtudes, porque a lei cobre apenas o aspecto externo dos atos humanos, e a virtude é um ato que tem origem interna, numa decisão livre da vontade, de tal forma que se a lei obrigasse a dar esmolas, a dar presentes de aniversário, obrigasse a demonstrar gratidão, estes atos em pouco tempo deixarão de ser virtuosos, porque o elemento da livre tomada de decisão ao bem esta ausente. Todos os atos vão ser meramente externos, mas o aperfeiçoamento do sujeito moral não será atingido, pois a lei não toca nos atos internos da vontade — que estão sempre além da compulsão legal — , e por isso a contribuição da lei é sempre indireta.

Quanto ao argumento da neutralidade, para esta tradição é viciado por principio, uma vez que sempre fazemos opções morais, sempre temos alguma atitude quanto a moral, e a própria atitude pela neutralidade moral ja é uma escolha que relega a moral uma natureza e um papel bem especifico, e por isso, é uma opção moral. Mais do que isso, pode-se dizer que qualquer lei irá ou promover a virtude, ou facilitar o vicio (GEORGE, p. 36). Uma pessoa poderia dizer que não se pode impor uma moral especifica quanto à questão do aborto, por exemplo, e que se deve deixar o aborto como “direito”, uma vez que isso não é uma questão moral, mas de “saúde pública”; mas ora, a visão de que o embrião não é uma vida humana digna não é uma questão relevante em termos políticos, ja é uma opção moral carregada, qual seja, de que questões morais relevantes tem de ser decididas segundo critérios morais pragmatistas, estatísticos, e não segundo um critério personalista, por exemplo. A opção moral sempre será feita, e para cada visão política existe determinados pressupostos morais e antropológicos não explicitados.

Na questão do aborto,por exemplo, haverão aqueles que verão nos prejuízos econômicos ao Estado razão suficiente para permitir o aborto em prol do “bem comum econômico”; outros verão como legitimo o aborto sempre que uma pessoa perceber sua gestação como um impeditivo para o exercício de sua “liberdade”, e neste caso está pressuposto um critério liberal; outros verão como legítimo o aborto enquanto o ser humano em gestação não possui plenas capacidades de estados conscientes contínuos, e nisto vemos um pressuposto funcionalista; e assim vai…nunca há neutralidade, quanto aos pressupostos. Mesmo o positivista (não positivista jurídico, mas o positivista no sentido filosófico, comteano), que busca uma neutralidade quanto aos valores, fiando-se apenas nos “fatos empiricamente verificáveis”, possui pressupostos axiológicos e filosóficos que o levam a ter como premissa metodológica fundamental que a realidade empiricamente verificável é a única que existe ou a única segundo a qual não se pode ter enganos — e para que isto fique provado, é pressuposta toda uma cosmovisão filosófica materialista que não pode ser demonstrada por verificação empírica, senão que tem que ser filosoficamente pressuposta e defendida para que todas as afirmativas seguintes possam fazer sentido, isto é, esta metodologia não pode ser provada por ela mesma, mas exige uma fundamentação anterior que não é ela mesma empiricamente verificável.

Dessa forma, busca explicitar os pressupostos antropológicos e éticos das visões liberais, e vê que a exigência de neutralidade feita por alguns liberais é cheia de pressupostos moralmente carregados e não explicitados. E procura, a partir deste ponto inicial, mostrar o porque considera que a Tradição Central do Jusnaturalismo, de Aristóteles e Tomás de Aquino, possui respostas importantes para refletir estes problemas.

(Continua)


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Teoria Neoclássica da Lei Natural - Conceitos Básicos (parte 1)

A Teoria Neoclássica da Lei Natural tem estado presente nos mais recentes debates de ética, filosofia politica e Teorias Analíticas do Direito, e foi capaz de articular novamente a filosofia de Tomás de Aquino para a linguagem analítica contemporânea, sendo o canal pelo qual a filosofia tomista se insere nos debates éticos e juridicos atuais. O "pai" da Teoria é o filosofo Germain Grisez, que em 1965 publica um comentário à Questão 94, artigo 2 da I-IIae da Suma Teologica de Santo Tomás de Aquino, no qual revisa a interpretação tradicional que se tem feito dos principios da lei natural, buscando mostrar que esta não se sustenta exegeticamente, tampouco filosóficamente, e que a interpretação tradicional se desvia da letra de S. Tomás e o interpreta à luz de tradições posteriores, como a suareziana.

Um artigo relevante, no qual Germain Grisez, John Finnis(o mais relevante expoente da Escola na área do Direito) e Joseph Boyle buscam aprofundar os fundamentos da teoria, pode ser útil como introdução - apesar de sua extensão. Será feita aqui uma sintese dos principais temas propostos no artigo de 1987 "Pratical Principles, Moral Truth, and Ultimate Ends".
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Iniciando o artigo, os autores deixam claro que, ao mesmo tempo em que a teoria por eles desenvolvida se aproxima e tem por fonte principal a obra de Tomás de Aquino e de Aristóteles, ela em muitos pontos diverge deles e traz contribuições próprias. Dessa maneira, alguns termos centrais não serão uma mera repetição de termos aristotélicos ou tomistas, mas aprofundamentos que muitas vezes exigirão novos termos mais adequados ao debate analitico ao qual se inserem.
Os temas tratados no artigo serão:
(i) Primeiros princípios do conheciemento prático da moralidade,
(ii) A relação destes primeiros princípios com outras cognições e sua verdade específica e
(iii) Sua relação com os fins últimos e a religião.

Ao tratar da estrutura da inteligência humana, vemos que ela possui uma dimensão cognoscitiva, e outra dimensão, prática. Essas dimensões são duas faces de uma mesma e unica razão, mas que são analiticamente distintas para fins de descrição. Quando se fala em ética, é principalmente ao aspecto prático de nossa inteligência que nos referimos; e para melhor descrever os princípios dessa inteligencia prática, os autores falam nos termos de motivos básicos (basic motives), que são irredutíveis a qualquer motivo anterior, isto é, são razões últimas para a ação, no sentido que não são instrumentais para atingir algum fim ulterior. Estes principios são descobertos não a partir de uma análise antropológica teorica da natureza humana, mas sim são descobertos ao examinarmos os objetos dos quais são princípios.

Ainda descrevendo a ação humana, distingue-se entre propósitos - que é um estado de coisas que pode ou não existir na realidade - e bens básicos , sendo que os segundos são razões subjacentes aos propositos. O bem, em outras palavras, é aquilo que torna alguem racionalmente interessado em agir pelo propósito, e dessa forma, os propósitos em si não instanciam nenhum bem concreto, mas de alguma forma participam deste bem básico; mas quando este propósito é atingido, dizemos que o bem pelo qual a razão está interessada em agir por aquele proposito foi instanciado.

Quanto aos propósitos, é feita no artigo uma distinção entre dois aspectos seus: (I) beneficio (benefit) (II) meta (goal). O primeiro seria o aspecto inteligivel de um propósito básico; o segundo seria a meta emocionalmente desejada. Aqui possuimos dois aspectos: intelectual e emocional, sendo que primariamente o foco se da no (I), em razão do objeto dessa investigação ser a ação racionalmente motivada, que possuindo esse aspecto inteligivel, dirige-se ao florescimento da pessoa como um todo, e não só a suas satisfação emocional. Mas os autores estão longe de um intelectualismo de cunho dualista que desconsidera em absoluto o papel das emoções na vida humana, e explicam que:
"Uma vez que as ações racionalmente dirigidas e escolhidas sempre são feitas com motivações emocionais, o propósito de cada ação destas inclui uma meta (goal). Motivos racionais dirigem a um florescimento (fullfilment) da pessoa como um todo; motivos emocionais dirigem a um florescimento da parte senciente da pessoa. Mas, ainda que sejam distintos um do outro, motivos racionais e emocionais estão dinamicamente unidos." (GRISEZ;FINNIS;BOYLE,1987, p.104-105)

Depois de descritas algumas das estruturas da ação humana, passemos aos primeiros principios da razão prática.
Em primeiro lugar, cabe destacar que os autores pontuam algumas caracteristicas desses principios da razão prática, isto é, desses bens básicos aos quais se dirigem nossas ações. A primeira nota caracteristica é a auto-evidencia, isto é, são conhecidos desde que se conheça o sentido de seus termos - auto-evidencia subjetiva. Isto quer dizer que esta análise dos primeiros principios, muito distante do que os criticos do jusnaturalismo gostariam de impugnar à teoria, não parte de deduções ou derivações de proposições anteriores, e são por isso indemostráveis tambem. Aqui duas perguntas podem surgir: (i) Se esses principios não podem ser derivados, como se dá nosso conhecimento sobre eles? Quais são os bens básicos?; e mais, (ii) se eles são indemostráveis, como se pode argumentar em favor deles, ja que nenhum argumento demontrativo seria possivel?

À primeira pergunta. pode-se responder que, nós os descobrimos não com um teste teórico dificílimo ou algo do tipo, mas simplesmente perguntando as razões pelas quais alguem age. E ao perguntar essas razões, entre as diversas respostas que serão dadas, podemos ver que todas podem ser reduzidas a um número de propósitos básicos, dirigidos a determinados bens básicos [i.e. que não visam bem ulterior; não instrumentais]. Essa lista de bens básicos (ou como Finnis dirá em obras posteriores, bens humanos básicos), não é uma mera criação humana contingente e variavel na história, mas sim são aspectos do florescimento das pessoas, e assim, correspondem a complexidades inerentes da natureza humana.

A divisão desta lista de Bens que os autores fazem aqui se divide em duas partes: (a) Bens substantivos - que são compartilhados por nós mesmo antes de deliberadamente os perseguirmos - , e (b) Bens Reflexivos - que são formas de harmonia entre os bens substanciais. Os (a) substanciais são (a.i) vida, (a.ii) experiencia estética, (a.iii) conhecimento, (a.iv) jogo e trabalho; ja os (b) reflexivos são (b.i) amizade/sociabilidade, (b.ii) paz interior, (b.iii) integridade e (b.iv) religião - que aqui compreende qualquer cosmovisão abrangente que fornece sentido para todas as realidades.

Para os que estudam a obra de John Finnis, verão que esta lista é um tanto quanto diferente da lista fornecida em seu livro Lei Natural e Direitos Naturais, onde ja não se faz a diferença entre bens substantivos e reflexivos, e também surge um bem humano básico que de alguma forma se relaciona com os aspectos (b.ii) e (b.iii): o bem da razoabilidade prática. Após o amadurecimento da obra de Finnis, que atinge um de seus ápices em Aquinas e em seus Collected Essays, mais um bem básico é incluido na lista: o bem humano básico do casamento. Enfim, são apenas comentários que podem ser úteis em uma perspectiva geral e mais vasta da obra.

Um corolário que os autores atingem - e que é uma das principais controvérsias dentro da Teoria Neoclássica, que recebe críticas contundentes de tomistas mais ortodoxos -, é que esses bens [humanos] básicos são incomensuráveis. A tese da incomensurabilidade pode ser resumida da seguinte maneira:
"uma vez que os bens básicos são razões sem razões ulteriores [i.e. são razões últimas], eles são principios primarios. E sendo princípios primarios, os bens de diversas categorias são incomensuraveis uns com os outros. 
Porque, se são comensuráveis, tem de ser homogeneos uns com os outros ou redutiveis a algo anterior pelo qual eles poderiam ser mensurados. Se eles são homogeneos uns com os outros, não constituiriam diversas categorias. Se são redutiveis a algo anterior, não seriam primários os principios. Portanto, são incomensuraveis." (GRISEZ;FINNIS; BOYLE, 1987, p. 110)
Mas outra pergunta ainda permanece: se eles são indemonstráveis, é possivel fazer defesa deles de alguma forma? Parece que sim! Ainda que não possamos demonstrar a mos geometricus os principios primários da razão prática, podemos defendê-los a partir de uma determinada dialetica. Primeiramente, sendo eles auto-evidentes e razões básicas de toda e qualquer ação, um argumento que Finnis levanta em seu Lei Natural e Direitos Naturais é de que qualquer tentiva de negação desses bens constitui uma contradição performática, e uma auto-refutação: ora, aquele que diz que o conhecimento não é um bem básico, uma razão básica para agir, pelo próprio fato de negar o status de bem ao conhecimento, o afirma e o experimenta como um bem ao saber que "o conhecimento não é um bem básico"; o mesmo que nega a sociabilidade só consegue fazê-lo negando para outrem, e no próprio ato de negar a este outro, experiementa o bem da sociabilidade como algo para ser feito, nem que seja para negar que ela seja um bem. Finnis diz que essas situações são análogas ao exemplo do cantor que inventa uma música cuja letra é "não estou cantando" e a canta - o próprio ato de cantar contradiz o conteudo cantado.

Em segundo lugar, os bens humanos básicos não estão no sentido forte de dever moral imperativo. Finnis foca no carater diretivo dos bens básicos, e mostra que a existencia desses bens não é algo criado por alguns homens ou por alguns filosofos morais que mandam seguir esses bens: pelo contrário, estes bens de alguma forma ja são seguidos por todos, ainda que esta instanciação se de de formas distintas e muitas vezes de formas mais ou menos razoáveis. Por exemplo, os autores não estão dizendo que existe uma regra de que os homens devem buscar a vida e o conheciento, mas sim que eles ja buscam esses bens, que são essas algumas das razões básicas pelas quais as pessoas agem. Isto é algo descritivo da ação humana, e não puramente normativo. Essa afirmação fica clara mesmo que se alegue a variação nas culturas, e quem quer que tenha lido o estudo de C.S. Lewis, A Abolição do Homem, verá que mesmo as diversas práticas culturais e morais pela história das sociedades guardam entre si uma semelhança na visão do que seja um bem e o que não seja, mas que pode haver alguns obstaculos morais, culturais, sociais que impedem que este bem seja instanciado da forma mais razoavel possivel, e que haja coisas moralmente condenáveis nestes casos.
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Ja chegando ao fim desta primeira parte, estamos no ponto em que se esta a buscar o Principio Primarissimo da razão prática, aquele sobre o qual "se fundam todos os outros preceitos da lei natural" (Summa Theol. I-IIae, Q. 94, a.2, resp). Ora, como é bem sabido, S. Tomás mostra que há uma analogia entre o principio primeiro da razão teórica com o mesmo da razão prática. Se é verdade que a razão teórica tem por fim a verdade teórica - que é uma adequação do intelecto à coisa -, então a razão prática deve ter uma verdade prática a ser alcançada tambem; só que para os autores, esta verdade prática por sua vez não constitui uma adequatio a uma verdade teórica anterior (senão o principio não seria primarissimo, mas termo médio de premissa anterior), mas sim em antecipar a realização do que é possivel fazer em conformidade com a proposição prática, e na diretividade da ação para a realização. Sinteticamente, pode-se dizer que:
"A verdade (isto é, a adequação) do conhecimento prático é a conformidade do que é para ser através do conhecimento até o conhecimento que irá ajudar a trazer isto." (GRISEZ;FINNIS; BOYLE; 1987, p. 117)
Então, se de fato há essa analogia, e sabe-se que o primeiro principio da razão teórica é o principio de não contradição, qual seria o primeiro principio da razão prática?
Só poderemos responder essa pergunta ao analisar qual o status deste na razão pratica: não serve como premissa, mas simplesmente proibe incoerencia, e assim, é condição de possibilidade para qualquer raciocinio teórico posterior, mas não é necessáriamente premissa de silogismos posteriores. Ora, o primeiro principio [primarissimo] da razão prática, é "bonum est faciendum et prosequendum et malum vitandum" (ST, I-IIae, Q. 94, a.2. resp), que funciona como uma condição de possibilidade para qualquer ação, e assim, "proibe" a ausencia de télos - pointlessness -  na ação (o bem tem razão de fim). O télos (point) do conhecimento prático é fornecer diretividade ao florescimento humano. Com a palavra dos autores, encerramos essa primeira parte desta sintese deste denso artigo:
"Conhecimento pratico dirige ao florescimento possivel atraves da ação, e beneficios constituem este florescimento. Então, o arrazoar sem télos (pointlessness thinking), que não pode dirigir a ação para realizar beneficio algum, não adiciona em nada para o conhecimento da verdade prática. Se esse pensamento sem télos é coerente, não ficaria aquém da verdade e falsidade da mesma forma que o arrazoar incoerente - independentemente de ser teorico ou prático - fica. Dessa forma, uma vez que não dirige a ação para trazer algo à conformidade com uma proposição prática, o pensamento sem télos (pointlessness) fica aquem da verdade ou falsidade prática. Portanto, ao proibir essa ausencia de finalidade, o primeiro principio da razão prática faz sua apropriada e indispensável contribuição para o conhecimento prático." (GRISEZ;FINNIS;BOYLE, 1987, p. 120)

  

domingo, 9 de dezembro de 2018

Educação e Liberdade - Reflexões sobre a Educação Liberal

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Quando se fala sobre educação, em nossas conversas coloquiais, muitas vezes se escuta o caráter "libertador" da educação, que liberta o homem de sua condição social e que lhe permite ascender cada vez mais economicamente, socialmente e intelectualmente. Bem, concedamos que este uso pode fazer algum sentido e ter mostrar uma das faces que a educação pode alcançar; mas parece que este sentido mostra apenas um pálido esqueleto do que poderíamos chamar de "educação liberal". Aqui a educação se reduz à finalidade de "emancipação social".

Quando, na Grécia e em Roma em seus tempos clássicos, se contrapunha "artes liberais" e "artes técnicas e servis", o que queria se distinguir eram as artes feitas para os homens "livres" em contraposição aos escravos, e o titulo "liberais" se justificava uma vez que essas artes precisavam de um tempo e recursos financeiros acessíveis geralmente ao homem livre, e não ao escravo. Uma educação essencialmente aristocrática. Concedamos em parte também esse uso, mas pontuando da mesma forma que não expressa em sua integridade o sentido focal de artes/educação liberal. A liberdade aqui é entendida como condição civil, simplesmente.

Então o que seria "educação liberal"? Quais seriam os objetos dela, e quais seus fins?

Duas figuras me ajudaram a refletir acerca dessa relação entre educação e liberdade: Henri Frederic Amiel e Viktor E. Frankl, que me ajudarão a esboçar uma resposta a essas difíceis perguntas. 

Amiel, crítico literário do século XIX, em Genebra, é um homem que poderíamos dizer que não teve na crítica literária sua reputação. Podemos ler em suas páginas do Diário Íntimo, quase um compendio de lamentos, onde ele escreve sobre sua tibieza, sua falta de magnanimidade para as grandes obras, seus amores frustrados - ou melhor, sua dificuldade de amar -, e tudo o mais que nos levaria a pensar que ele, homem intelectualmente cheio de vigor, faz uma contraposição entre vida intelectual e felicidade, liberdade.
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Mas ao contrário do que poderia ser a primeira impressão, Amiel aparece em alguns dias exprimindo o quão realizado ele é nesta vida, entre prazeres literários, livros, meditações e até nos lamentos. De fato, alguns dias parece que ele clama para sair desse exílio que sua vida intelectual lhe dá; no dia 31 de dezembro de 1847, como que um melancólico pedido de socorro, diz:

"Preciso de afeição. Ofende a minha franqueza ter a aparência de um amigo e não o ser na realidade. A ausência de seriedade me repele decididamente. - Não sei ainda viver entre os homens; mormente entre os meus contemporâneos." (AMIEL, 2010, p. 51)

Mas por outro lado, vemos em outros dias uma alegria que só poderia ser fruída por um homem com sua profundidade de espírito. No dia 8 de junho de 1856, por exemplo, ele desabafa em tom de alegria:

"Dia feliz. Dei meu coração a todas as coisas, à natureza que hoje foi maravilhosamente bela, à família, que vi toda, aos amigos que encontrei, às rosas silvestres, aos grilos do fosso, ao céu azul no qual passou dançando toda a feeria das horas do dia e da noite, como uma ronda de gênios, de graças imortais, à Boa Providência que abençoei pela alegria de que eu estava inundando e pela poesia que banhou e penetrou os meus sentidos e a minha alma num crescendo quase de hora em hora." (AMIEL,2010, p. 127)

Bem, e o que os lamentos e alegrias de um homem do século XIX tem a dizer sobre educação liberal?
Amiel estudou humanidades, filosofia, línguas, filologia, e tudo o mais que um homem educado de seu tempo poderia desejar para ser um homem de letras, um intelectual. Em que sentido poderíamos dizer que Amiel era livre? De que liberdade a vida de Amiel revela que pode nos ajudar a entender o caráter "livre" da educação?


Em primeiro lugar, não é uma liberdade social como possibilidade de ascensão econômica, politica, ou algo do tipo; tampouco é uma liberdade meramente civil de não ter a condição de escravo. É uma liberdade muito maior: uma liberdade interior, moral. Uma intensa vida intima - não reduzindo íntima à "privada", mas sim remetendo à uma interior -, capaz de penetrar profundamente em todas as realidades humanas, capaz de sentir uma tristeza e desolação profundas, mas também uma mais profunda alegria. De Amiel se pode dizer que nada do que é humano lhe foi alheio, e que sua vida intelectual foi - apesar de sua paralisia em relação aos seus contemporâneos - um imenso diálogo; e aqui chegamos a primeira característica da educação liberal: universalidade.  


A palavra "universal" pode ser aplicada a um homem em vários sentidos. Pode-se dizer que ele é universalmente conhecido e famoso, pode-se dizer que ele consegue falar a todos, mas também pode-se dizer que ele é universal por ter dialogado com homens de todos os tempos: com os gregos Platão e Aristóteles, com o estilo de Cicero, com a escrita fervorosa de Santo Agostinho, com a perspicácia de Santo Tomas, com a eloquência de Chateubriand. O homem livre aqui é aquele que - como disse uma vez Chesterton - não está preso na má sorte de ser um homem atual demais, não está preso em seu tempo, e por isso consegue enxergar as coisas com mais clareza, perspectiva, e sabendo ao mesmo tempo ser distanciado das euforias de seus contemporâneos (por saber que "não há nada de novo sob o sol"), e também se envolvendo mais fervorosamente em todos os negócios de seu século, como que uma voz de sabedoria na crise.

Não me parece que Amiel, apesar de seus lamentos, trocaria sua vida por uma diferente. Ele - e todo aquele que segue uma reta vida intelectual, fundada na busca pela verdade e, e no amor pela Verdade mesma - é livre o suficiente para ver a riqueza interior que não pode ser sacrificada, para saber que "[c]ada qual tem sua obra" e que "[o] sapateiro que cose uma sola serve por uma multidão de intermediários para engrandecer a vida de Deus no homem" (AMIEL,p.52); é livre para viver este dever como vocação divina e para ver nisto sua alegria. A liberdade que mais se aproximaria do sentido que estamos tentando alcançar seria esta: a liberdade de sermos aquilo para o qual fomos feitos. Liberdade que parte de uma vida interior que não se abala pelas renuncias exigidas, e que de fato percebe que é melhor ser um Sócrates insatisfeito, do que um porco satisfeito.

Um segundo exemplo marcante da liberdade à qual o termo "Educação Liberal" em seu sentido central parece remeter é dado no maravilhoso livro do Psiquiatra alemão Viktor Frankl (1905-1997), Em Busca de Sentido, no qual o autor conta suas experiências em um campo de concentração. Entre os emocionantes relatos contados pelo Dr. Frankl, uma é de grande ajuda em nossa reflexão: ele relata que nos campos, algo o impressionou sobremaneira. É verdade que ele conta da "brutal luta pela existência", da apatia entre os prisioneiros, da fome, da insensibilidade que se vai adquirindo, e também do processo de despersonalização; desses relatos, intuitivamente poderíamos supor que os homens mais "duros" teriam uma melhor sorte dentro de tão extenuantes trabalhos e provações extremas, e que sobreviveriam de forma mais duradoura do que os vários intelectuais, homens de letras em geral, acadêmicos enviados para lá, uma vez que estes últimos não estariam acostumados com as exigências dos trabalhos. Mas o que a experiência do Dr. Frankl mostrou foi precisamente o inverso: no ambiente hostil e despersonalizador do campo de concentração, muitos dos que seriam considerados fortes foram os primeiros abalados, tendo problemas psíquicos que influíram em suas capacidades físicas, de tal forma que alguns foram levados até mesmo ao suicídio; com os homens de letras, pelo contrário, ele relata que

"[p]essoas sensíveis, originalmente habituadas a uma vida intelectual e culturalmente ativa, dependendo das circunstancias e a despeito de sua delicada sensibilidade emocional, experimentarão a difícil situação externa no campo de concentração de forma, sem dúvida, dolorosa; essa, não obstante, terá para elas efeitos menos destrutivos em sua existência espiritual. Pois justamente para essas pessoas permanece aberta a possibilidade de se retirar daquele ambiente terrível para se refugiar num domínio de liberdade espiritual e riqueza interior. Essa é a unica explicação para o paradoxo de, às vezes, justamente aquelas pessoas de constituição mais delicada conseguirem suportar melhor a vida num campo de concentração do que as pessoas de natureza mais robusta." (FRANKL, 2011, p. 53)


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Parece que essa riqueza interior e atitude perante o bem, mesmo em circunstancias extremas, é um dos pontos que clarifica a ideia de liberdade que um determinado tipo de educação - educação liberal - pode proporcionar. Note-se que no relato de Frankl - e em nossa reflexão - em nenhum momento se reduz a educação liberal a uma educação meramente intelectual. Muito pelo contrário: ela pressupõe principalmente uma atitude moral perante a realidade e quanto a tudo que cerca o homem; pressupõe uma clara hierarquia de valores que hão de fazer com que o homem confronte-se com o Fundamento de sua existência, com o próprio Deus, com Deus pessoa, e com Aquele que é a Verdade mesma e por quem tudo é verdadeiro, Cristo. 
É na atitude do intelectual cristão que a união entre virtude moral e intelectual pode atingir seu ápice, é na vida daquele que ama vê em Deus o principio e fim de sua vida que é capaz de ordenar todos os valores criados sob sua justa hierarquia. É na atitude cristã de desprendimento que o homem pode ao mesmo tempo desprezar tudo aquilo que é supérfluo e "amar o mundo apaixonadamente" (como dizia São Josemaria Escriva), vendo todas as coisas sub specie aeternitatis.  

Nunca será demais recordar as lições de um dos maiores educadores medievais, Hugo de São Vitor (1096- 1141), que quase não fazia distinção entre a atitude do monge e a atitude do intelectual perante o mundo. A liberdade que aquele que ama a verdade - philosopus - e a busca diligentemente se compara à atitude do monge de ver o mundo como um exílio; e em seu Didascalicon, finaliza um dos capítulos com uma bela lição:
"É delicado aquele para quem a pátria é doce; é forte aquele para quem toda terra é pátria; é perfeito aquele para quem todo mundo é exílio."
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Esta atitude moral, que se mostra em todo o seu vigor na tradição intelectual católica, será melhor investigada nas próximas reflexões.

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