Da Abadia de São Vitor, no século XII, até nossos dias, os estudantes das chamadas “humanidades” tem muito a agradecer ao Abade Hugo, que foi um dos maiores educadores que o periodo da baixa idade média nos legou, e que soube sistematizar um plano completo da educação do homem de letras — humanas e divinas.
É particularmente intrigante para um homem de nosso tempo que o tratamento que Hugo dá ao filosofo — em sua obra magistral Didascalicon — , tratando-o como um sinonimo quase perfeito do monge, que recluso em sua cela do mosteiro, vive numa vida de abnegação e oração, penitencia e contemplação, temperança e disciplina, e assim é capaz de se dedicar aos altos estudos. Este ideal de formação moral e espiritual do sábio cristão na educação — que Werner Jaeger chamou de Paideia Christi ao tratar do surgimento do ideal nos Santos Padres — é válido ainda hoje para toda e qualquer pessoa que, tendo a vocação intelectual e a graça da fé católica, busca crescer em sabedoria, ser educado pelo Logos Divino e dar frutos. É neste mesmo tom que A.D. Sertillanges, em um de seus mais célebres livros, clama o intelectual a cultivar a virtude do silêncio, do recolhimento, da meditação da verdade:
“Querem os senhores compor uma obra intelectual? Comecem por criar em seu interior uma zona de silencio, um hábito de recolhimento, uma vontade de despojamento, de desapego, que os deixem inteiramente disponíveis para a obra; adquiram esta disposição das faculdades mentais isenta do peso de desejos e de vontade própria, que é o estado de graça do intelectual. Sem isso, não farão nada, em todo caso, nada que valha.”
A educação do intelectual cristão tem então como pressuposto uma prévia educação moral e espiritual, uma submissão ao Logos Divino que se fez carne e habitou entre nós. Uma submissão que muito distante de nos restringir intelectualmente, abre horizontes que só podem ser vistos sob a luz da fé: é o mesmo Sertillanges que recorda que“ razão tem por ambição apenas um mundo; a fé lhe da a imensidão” ( p. 18). E entre esses pressupostos morais e intelectuais, Hugo põe em primeiro lugar — em seu Opusculo Sobre o Modo de Aprender e Meditar — a humildade.
Hugo de São Vitor, como o bom monge que foi, coloca a humildade no principio do aprendizado. A humildade é assim em razão da atitude que o que o possuidor dessa virtude tem diante da realidade que o cerca: é uma virtude que traz um realismo quanto a sua condição, a humildade é a condição do amante da sabedoria que, mesmo sendo Sócrates, sabe apenas que nada sabe. Ou melhor dizendo, é a condição daquele que quanto mais conhece, mais descobre o quanto ainda falta conhecer, o quão inesgotável é o conhecimento das coisas, e o quanto devemos prescrutar a realidade com diligência e ardor, mesmo sabendo que nunca a esgotaremos (Santo Tomás diz que não somos capazes de esgotar a inteligibilidade nem mesmo de uma mosca). Essa atitude se faz necessária justamente porque :
“…a verdade total esconde-se de nós, porque quanto mais nosso espirito arda de amor, e quanto mais profunda se torne a busca pela verdade, mais difícil sua compreensão plena.” (Hugo de São Vitor, Didascalicon)
A humildade, que lembra a condição de pó e terra(humus), na verdade é a condição de possibilidade para qualquer pretensão de ascender moral e intelectualmente. Inicia por ser uma virtude do homem realista (não no sentido moderno, pessimista), que conhece bem a si mesmo e a suas misérias; um homem que, quando possuidor dessa virtude, pode repetir o ponto do Caminho, de São Josemaria Escriva:
“Tu?… Soberba? — De quê? (Caminho, 600)
A humildade é também uma postura de submissão, em certo sentido. E por isso Sertillanges, ao tratar da necessidade da virtude da laboriosidade no intelectual, diz que “a verdade só se mostra aos seus servos”, àqueles que se submetem à verdade conhecida, e que como no ditado popular, vem na verdade conhecida uma verdade a ser obedecida.
Obviamente, fica muito mais claro o sentido de humildade no Opúsculo quando recordamos uma passagem das Escrituras — que com certeza acompanhava os monges da abadia de São Vitor — que diz que “o temor do Senhor é o principio da Sabedoria (Prov. 9,10)”; por isso, a sabedoria tem um caráter sacro, e a investigação intelectual será um prescrutar das pequenas verdades que tem sua fonte na Verdade Eterna, que faz do sábio, do filósofo e do amante da sabedoria em geral um teófilo, alguém que encarna em sua vida o primeiro mandamento de amar o Senhor Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a inteligencia.
O adágio tomista de que “todas as coisas, tendendo a seus próprios fins e perfeição, tendem a Deus, que é o Fim Último e Suprema Perfeição” é um modelo que inspira a investigação das realidades criadas como referentes tambem a teologia, e por isso, a humildade exigida ao estudante não é só algo interior, mas tambem uma atitude em relação à realidade exterior. Para estes — que certamente ficariam escandalizados com os delírios desconstrucionistas contemporâneos — , nós não criamos a realidade, mas sim, nos submetemos a ela. A filosofia medieval — tachada de “teocentrica demais” — parece portanto ser menos “teocentrica” que a visão contemporânea dos seres humanos como pequenos deuses criando a realidade social, ontológica, moral, etc. Há um realismo muito grande; não criamos a realidade, nos submetemos a ela. E a virtude que nos dá essa capacidade é a humildade.
Diferentemente de alguns fideísmos protestantes e dos sentimentalismos contemporâneos dentro da teologia, Hugo vê no estudo da sabedoria não um empecilho para a vida espiritual, mas sim uma forma de ascender cada vez mais. Assim como dirá Santo Tomas nos primeiros capitulos da Suma Contra os Gentios um século depois, o Abade de São Vitor também vê o genuino filósofo como sinônimo do teófilo, daquele que ama a Deus, e vê no estudo da sabedoria uma aproximação Daquele que criou tudo com sabedoria.
Tendo explicado a importância da vida moral e espiritual na vida do intelectual cristão, podemos avançar na importancia que Hugo dá ao estudo das artes liberais para o desenvolvimento do estudo das disciplinas mais altas e nobres (Teologia Sagrada; mais especificamente, o estudo das Sagradas Escrituras).
Como o mestre que escreve para iniciantes, em seu Didascalicon expõe três preceitos prévios quanto a leitura (que como veremos, é princípio da doutrina): (i) Saber o que devemos ler; (ii) a ordem com que devemos ler e (iii) como devemos ler.
Quanto ao primeiro, diz respeito à importancia de se escolher bem os livros a serem lidos, principalmente em uma era onde muitos livros supérfluos são publicados e que nos fazem perder um bom tempo que poderiamos usar lendo os realmente importantes, os que vão nos auxiliar nos estudos mais nobres e os próprios estudos sagrados. Esse conselho preliminar do Didascalicon — que pode parecer restritivo — parece se contrapor ao conselho do mesmo autor no Opusculo Sobre o Aprender e Meditar, de que não se deve desprezar e nem tratar qualquer escrito como vil. Mas é claro que, como um bom escolastico faria, precisamos fazer certas distinções que farão claras as coisas.
O estudante deve ter uma certa atitude de abertura perante a realidade, perante os conhecimentos; e aqui, Hugo cita o ensinamento paulino “provai de tudo, ficai com o que é bom” (Ts 5,21), que é uma amostra dessa atitude. De fato, também Sertillanges usa a analogia do garimpo e da peneira para fazer visível: o intelectual (e no caso do opúsculo, o estudante) deve saber extrair da lama a sua melhor substancia, saber tirar dos pedregulhos, areia, galhos, o que de ouro se oculta nestes, mesmo que seja pouco. Obviamente isso não é um incentivo a vã curiosidade, prejudicial ao progresso intelectual, mas sim uma atitude que deriva diretamente da virtude da humildade.
Ao descobrir nossa situação, de forma realista, e o quanto não sabemos e precisamos ainda aprender, adquire-se uma posição de aprendiz, que ligado ao primeiro conselho, busca aprender de todos, sem distinção — de tudo é possivel fazer o “garimpo” e retirar o minimo que seja de ouro.
Não é absurdo supor que o Mestre de São Vitor — ao aconselhar no inicio de seu Opúsculo: “não ter como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura” — não podia imaginar como as livrarias e bibliotecas de hoje estariam tão cheias, mas ao mesmo tempo tão vazias. Nem sequer se passava por sua mente, que um dia os livros não seriam mais tão dificeis de serem encontrados, e que os livros classicos — tratados em sua época como tesouros — seriam hoje abandonados pela nova moda “literária”(utilizando aqui uma analogia imprópria ao chamar o que vemos hoje de literatura) de cada mês.
Bem, mas não é muito útil saber quais livros devem ser lidos se não se sabe qual a ordem da leitura. Bons livros, quando lidos fora da ordem (cronológica, de complexidade, de importancia para a disciplina), podem causar mais confusão e prejudicar mais o crescimento intelectual do que simplesmente não ler nada. Por essa razão, a ordem de ler os livros essenciais é extremamente importante para o estudante.
Sabendo o que ler e a ordem dessas leituras, devemos saber como ler cada uma delas e tirar o melhor proveito de cada uma para o avanço nos estudos. Alguns livros irão exigir uma leitura mais meditada por sua densidade, outros, nem tanto. Alguns levarão tempo para um bom fichamento, em outros talvez não seja necessário que seja feito. Alguns precisarão ser relidos (e estes são geralmente os mais relevantes), outros servirão apenas para mapear um debate mais amplo dentro do objeto do estudo. Sobre o modo de ler, o próprio livro há de impor ao estudante, que irá com o tempo descobrindo a maneira mais facil de aprender e reter na memória o aprendido, ordenando o mais importante a ser memorizado e conectando as diversas impressões que podem haver em comum com outros estudos.
Estes parecem ser alguns conselhos úteis àqueles que são buscam cultivar uma vida intelectual, vindos diretamente do distante século XII até nós. E mesmo que pareça haver uma disparidade entre esses tempos, a substancia dos conselhos de Hugo permanece intacta para o homem contemporâneo; ainda hoje o que cultiva a vida intelectual ainda é tido por louco por seu silencio, por sua disciplina, por sua conversa silenciosa, sua grande — e por vezes solitária — conversa com os gigantes do passado, etc. Mas a todos estes que o tem por louco, a resposta do Mestre de São Vitor permanece valorosa:
“…alguém poderia se dirigir a um filósofo dizendo: ‘tu não vês como os homens zombam de ti?’ E, em resposta ele diria: ‘sim, eles zombam de mim, mas deles zombam os asnos’.” (Didascálicon — A Arte de Ler)
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