sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Notas sobre História do Direito - A Formação da Tradição Juridica Ocidental

Este pequeno ensaio (ou melhor, conjunto de notas extensas que necessitam de uma organização posterior) surgiu da leitura do livro Direito e Revolução - A Formação da Tradição Jurídica Ocidental, de Harold Berman (UNISINOS, 2004) e a partir das aulas do professor Dr. Sandro Alex Simões, que assisto como Monitor da disciplina História do Direito e do Pensamento Juridico no Centro Universitário do Estado do Pará. 


A Criação da Tradição Juridica Ocidental na Revolução Papal de Gregório VII.

O Direito Costumeiro
Logo após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, houveram sucessivas invasões de povos bárbaros (godos, alamanos, hunos,etc) cujos costumes jurídicos eram muito distintos da Tradição Juridica Romana. Com essas invasões, todo o grande território unificado que era o Império do Ocidente passa por um processo de desagregação, dissociação, desordem e conflitos intermináveis dos povos bárbaros entre si. 
Tendo estes povos costumes muito diferentes entre si e alguns eram naturalmente inimigos de outros, esse período inicial da Alta Idade Média ficou marcado pelo pluralismo juridico/político, pluralidade de ordenamentos (que são diferentes de sistemas juridicos, como mais claro ficará) nos quais prevalece uma especie de direito tribal baseado muitas vezes no alto valor dado à honra e aos juramentos (principalmente entre os germânicos),o que acabou por sedimentar espécies de retribuições talionicas, proporcionais ao delito cometido por alguém. Será visto mais tarde a importância que a passagem dessa vingança privada para a retribuição monetária pelo delito vai inovar de certa maneira o processo de pacificação de conflitos entre esses povos. Além desse caráter fragmentário, costumeiro e tribal, pode- se dizer que outro elemento importante da ordem juridica desses povos é a presença de um certo Direito Romano vulgarizado (e sem coesão orgânica ou sistemática)que se mesclava às características citadas e dava a estes povos (sobretudo os germânicos) um caráter jurídico particular.

Essas característica tribal, costumeira e quase religiosa do direito em alguns momentos fez com que ele fosse um tanto quanto estático nesses povos, e viesse apenas de costumes imemoriais cuja mais ínfima modificação se mostra como indesejável. Isso só foi mudar a partir da difusão o cristianismo e do desenvolvimento do poder real, que transcende o localismo tribal; ora, uma vez que o cristianismo é por si uma fator de unificação na fé dos povos e mostra a relatividade dos costumes em relação ao valores necessários à salvação e que o poder real torna os povos um só e de certa forma vai unificando-os até mesmo culturalmente, isso abala essa imutabilidade dos costumes tribais e seu localismo. Na verdade, ainda haviam muitos impedimentos para uma unificação maior da sociedade, tais como o localismo da economia e a dificuldade de comunicação.

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Outro fator importante para a compreensão do futuro desenvolvimento de um sistema juridico no Ocidente é o sistema de penitenciais , que teve origem nos mosteiros, e buscava auxiliar os padres a ministrar o Sacramento da Penitência. Esse sistema compilado por clérigos formava um conjunto de regras não oficiais que ajudava este a saber a gravidade de cada pecado em cada circunstancia e prever qual penitencia lhe corresponde por cada um desses pecados. Veio auxiliar e unificar — ainda que de maneira não oficial — as penitencias entre os mosteiros, uma vez que podiam haver duvidas ou discrepâncias muito grandes entre duas penitências dadas pelo mesmo pecado, dependendo do sacerdote que ministrasse o sacramento. Com o tempo, o costume da Penitência Pública dos pecados foi sendo substituído — sob influencia dos celtas — pela confissão auricular, individual.

Dentro do desenvolvimento das relações do cristianismo com os povos bárbaros , podemos analisar o estreitamento da relações com Carlos Magno, coroado no Natal do ano 800 pelo Papa. 
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O que é conhecido como sistema jurídico teve origem no final do séc. XI e início do XII, no seio da Igreja Católica. Sistema Jurídico é diferente de ordem jurídica.

Veio da afirmação mais veemente da supremacia papal, na chamada Revolução Papal de Gregório VII — em 1075 —  sobre toda a Igreja ocidental e declaração de independência de todo poder secular. Dessa maneira, a Igreja consegue uma identidade jurídica independente de reis, imperadores, senhores feudais. A base social que o catolicismo formou foi muito importante como fator unificador, a partir da comunhão da mesma fé entre os povos, e assim, poderia-se dizer que havia um populus christianus .
A partir deste momento, o direito arcaico dos povos tribais foi praticamente desaparecendo nos séculos seguintes.

Direito Canônico: Primeiro sistema juridico ocidental moderno

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O direito canônico foi o primeiro sistema jurídico do Ocidente. Isso não quer dizer que não tenha havido antes ordem jurídica alguma: são conceitos diferentes. Anteriormente, as leis ecleasiásticas eram mais como que um combinado de exortações de fontes difusas do que um sistema propriamente dito.
Essas normas eclesiásticas a principio tiveram muita influencia do direito romano até mesmo em questão de casamento, sucessões, propriedade ,etc. Isso se deu porque a Igreja acabou por ser vista como depositária do direito romano, dentro do turbilhão bárbaro e de sua multiplicidade nas leis e costumes. Geralmente, as normas no primeiro milênio mesclavam fontes diversas, tais como a Bíblia (principalmente algumas regras do Antigo Testamento), algumas fontes de Direito Romano (ja vulgarizado) e o Direito Costumeiro dos povos germânicos.

Essas leis eclesiásticas tinham antes da codificação uma relação mais profunda com a liturgia, vida moral e sacramental; eram quase que indistintos um do outro. A sistematização esteve ligada principalmente e diretamente à Revolução Papal de Gregório VII, de onde se tornou mais forte o papel centralizador do Pontífice e tornou mais forte sua autoridade perante as Igrejas Ocidentais, tanto para assuntos espirituais, quanto à questões legislativas dentro da Igreja. Essa sistematização legislativa (levada a cabo pelo monge Graciano) tornou-se o que chamamos de Direito Canônico, cuja influência do Direito Romano (que estava a vias de ser redescoberto) se mostrou presente com o surgimento de uma classe relativamente nova de intelectuais : os canonistas. Estes eram como que uma especie de juristas eclesiásticos, glosavam os textos e fizeram com que este sistema superasse um imobilismo. Ele possibilitava um desenvolvimento orgânico e dinamico, apesar de algumas vezes desordenado. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A Teologia Apofática e A Hierarquia Celeste - Pseudo Dionísio Areopagita

"Observo também que o divino mistério do amor de Jesus aos homens foi primeiramente manifestado aos anjos e por meio deles chegou a nós a graça do seu conhecimento." (Capitulo Quarto)


Este é um mapa conceitual que criei a partir da leitura do livro A Hierarquia Celeste, do Pseudo - Dionísio Areopagita.
Este autor possui uma importancia singular em toda a filosofia medieval, sendo um dos mais citados e que percebemos que influenciou de forma importante a obra de Santo Tomás de Aquino, tanto em sua teologia natural, cuja ideia de teologia apofática ele traz do Areopagíta,  quanto em seu tratamento acerca das inteligencias puras, os anjos.

Quanto a teologia apofática, ou via negativa, o autor busca explicar que de Deus, pela nossa razão natural, nunca podemos afirmar o que Ele é - em razão tanto da infinitude divina que é inapreensível e incomensurável, quanto do nosso modo limitado de conhecer - mas somente aquilo que Ele não é. Sabemos que ele é infinito, que Nele não se pode encontrar limitação alguma, que não há nada que Ele não conheça em ato, que não tem partes (não é composto), etc. Tudo isso nos mostra a via negativa para ascender ao conhecimento de Deus pela razão natural, uma vez que não podemos apreende-lo imediatamente pelos nossos sentidos (uma vez que Deus tambem não é matéria). O autor do magnifico livro diz sobre isto:

"Ocorre por isto que as mesmas Escrituras enaltecem a Deidade com expressões totalmente dessemelhantes. Chamam-na de invisível, infinita, incompreensível e de outras coisas que dão a entender não o que é, mas o que não é. Esta segunda maneira, segundo o meu entender, é muito mais própria ao falar de Deus pois, como a secreta e Sagrada Tradição nos ensina, nada do que existiu se parece com Deus e desconhecemos sua supraessencia invisível, inefável, incompreensível (Col 1,15; I Tm 1,17; Hb 11, 27)." (Capitulo Segundo)

Deus é tão infinitamente superior a qualquer qualitativo que prediquemos a Ele, que qualquer palavra ainda vai ser insuficiente e não apreenderá tudo o que Ele é. De fato, o emprego da analogia para falar das coisas de Deus é um dos pontos importantes desenvolvidos por Santo Tomás nesse quesito. A analogia, busca mostrar uma certa semelhança entre o sujeito e predicado, mas ao mesmo tempo, revela a dessemelhança entre ambos. Ainda sobre a via negativa, [Pseudo] Dionísio diz:

"Posto que a negação parece ser mais apropriada para falar de Deus, e a afirmação positiva é sempre inadequada para o mistério inexpressável, convém melhor referir-se ao invisível por meio de figuras dessemelhantes." (Capitulo Segundo)


Sobre as Hierarquias Celestes: Mapa Conceitual que criei.
-Revelado pelas Sagradas Escrituras de modo simbólico e anagógico: "A teologia utiliza-se de imagens poéticas ao estudar essas inteligências, que carecem de figuras. Porém, como fica dito, o faz em atenção a nossa própria maneira de entender; serve-se de passagens bíblicas colocadas ao nosso alcance, em forma anagógica, para elevar-nos mais facilmente ao espiritual." (Capitulo Segundo)
-Transmitem aos demais os mistérios da Deidade: " Estas inteligências são as que mais rica e intimamente participam de Deus, e por sua vez são as primeiras e mais abundantes em transmitir as demais os mistérios escondidos da Deidade. Pelo que corresponde-lhes mais do que à ninguem o título de anjo ou mensageiro." (Capítulo Quarto)
-Nomes: "Modos distintos de receber a propriedade deiforme" (Capitulo Sétimo)
Alguns nomes: 
[PRIMEIRA HIERARQUIA] -> Tronos (remete à elevação até os cumes, do mais alto, perfeição); Serafim (inflamado, incandescente, enfervorizante, purificação);  Querubim (plenitude de conhecimento ou transbordante de sabedoria, iluminação);

[SEGUNDA HIERARQUIA]: -> Dominações (elevar-se livre e desagrilhoado de tendencias terrenas); Virtudes (alude à fortaleza viril, inquebrantável em toda obra, ao modo de Deus); Potestades (indicam a natureza ordenada do poder celestial e intelectual).

[TERCEIRA HIERARQUIA]: -> Principados (mando principesco que aqueles anjos exercem à imitação de Deus); Santos Arcanjos (intermediaria para comunicar aos anjos as iluminações que recebem de Deus por meio das primeiras hierarquias); Anjos (grau inferior, mais próxima dos seres humanos, velam por nossa hierarquia humana)

-Sobre as relações entre as hierarquias: "...as hierarquias superiores possuem em grau eminente os atributos de seus inferiores, enquanto que estes últimos não possuem a plenitude transcendente dos mais altos, se bem que a iluminação pura do Princípio lhes é parcialmente transmitida por meio dos primeiros na proporção da capacidade receptiva dos últimos." (Capitulo Décimo Primeiro)

" De fato, todos os seres inteligentes deificados participam na sabedoria e na ciência. Eles se diferenciam segundo o que esta participação venha diretamente da fonte ou de modo indireto e inferior, conforme a capacidade de cada um. Into se pode dizer de todos os seres inteligencias deificados, e assim como a primeira ordem possui em plenitude os santos atributos de suas inferiores, estes tem também os dos superiores, ainda que em menor proporção, não de igual modo." (Capítulo Décimo Segundo)

Temos que encher-nos de coragem, já que a graça do Senhor não nos há de faltar; Deus estará ao nosso lado e enviará seus Anjos para que sejam nossos companheiros de viagem, nossos prudentes conselheiros ao longo do caminho, nossos colaboradores em todas as nossas tarefas. In manibus portabunt te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum , continua o salmo: os Anjos te levarão nas mãos, para que teu pé não tropece em pedra alguma.
É Cristo que passa, 63 - São Josemaria Escriva.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Hugo de São Vitor, o monge, e o intelectual do século XXI.


Da Abadia de São Vitor, no século XII, até nossos dias, os estudantes das chamadas “humanidades” tem muito a agradecer ao Abade Hugo, que foi um dos maiores educadores que o periodo da baixa idade média nos legou, e que soube sistematizar um plano completo da educação do homem de letras — humanas e divinas.
É particularmente intrigante para um homem de nosso tempo que o tratamento que Hugo dá ao filosofo — em sua obra magistral Didascalicon — , tratando-o como um sinonimo quase perfeito do monge, que recluso em sua cela do mosteiro, vive numa vida de abnegação e oração, penitencia e contemplação, temperança e disciplina, e assim é capaz de se dedicar aos altos estudos. Este ideal de formação moral e espiritual do sábio cristão na educação — que Werner Jaeger chamou de Paideia Christi ao tratar do surgimento do ideal nos Santos Padres — é válido ainda hoje para toda e qualquer pessoa que, tendo a vocação intelectual e a graça da fé católica, busca crescer em sabedoria, ser educado pelo Logos Divino e dar frutos. É neste mesmo tom que A.D. Sertillanges, em um de seus mais célebres livros, clama o intelectual a cultivar a virtude do silêncio, do recolhimento, da meditação da verdade:
 “Querem os senhores compor uma obra intelectual? Comecem por criar em seu interior uma zona de silencio, um hábito de recolhimento, uma vontade de despojamento, de desapego, que os deixem inteiramente disponíveis para a obra; adquiram esta disposição das faculdades mentais isenta do peso de desejos e de vontade própria, que é o estado de graça do intelectual. Sem isso, não farão nada, em todo caso, nada que valha.”
A educação do intelectual cristão tem então como pressuposto uma prévia educação moral e espiritual, uma submissão ao Logos Divino que se fez carne e habitou entre nós. Uma submissão que muito distante de nos restringir intelectualmente, abre horizontes que só podem ser vistos sob a luz da fé: é o mesmo Sertillanges que recorda que“ razão tem por ambição apenas um mundo; a fé lhe da a imensidão” ( p. 18). E entre esses pressupostos morais e intelectuais, Hugo põe em primeiro lugar — em seu Opusculo Sobre o Modo de Aprender e Meditar — a humildade.
Hugo de São Vitor, como o bom monge que foi, coloca a humildade no principio do aprendizado. A humildade é assim em razão da atitude que o que o possuidor dessa virtude tem diante da realidade que o cerca: é uma virtude que traz um realismo quanto a sua condição, a humildade é a condição do amante da sabedoria que, mesmo sendo Sócrates, sabe apenas que nada sabe. Ou melhor dizendo, é a condição daquele que quanto mais conhece, mais descobre o quanto ainda falta conhecer, o quão inesgotável é o conhecimento das coisas, e o quanto devemos prescrutar a realidade com diligência e ardor, mesmo sabendo que nunca a esgotaremos (Santo Tomás diz que não somos capazes de esgotar a inteligibilidade nem mesmo de uma mosca). Essa atitude se faz necessária justamente porque :
“…a verdade total esconde-se de nós, porque quanto mais nosso espirito arda de amor, e quanto mais profunda se torne a busca pela verdade, mais difícil sua compreensão plena.” (Hugo de São Vitor, Didascalicon)
A humildade, que lembra a condição de pó e terra(humus), na verdade é a condição de possibilidade para qualquer pretensão de ascender moral e intelectualmente. Inicia por ser uma virtude do homem realista (não no sentido moderno, pessimista), que conhece bem a si mesmo e a suas misérias; um homem que, quando possuidor dessa virtude, pode repetir o ponto do Caminho, de São Josemaria Escriva: 
“Tu?… Soberba? — De quê? (Caminho, 600)
A humildade é também uma postura de submissão, em certo sentido. E por isso Sertillanges, ao tratar da necessidade da virtude da laboriosidade no intelectual, diz que “a verdade só se mostra aos seus servos”, àqueles que se submetem à verdade conhecida, e que como no ditado popular, vem na verdade conhecida uma verdade a ser obedecida.

Obviamente, fica muito mais claro o sentido de humildade no Opúsculo quando recordamos uma passagem das Escrituras — que com certeza acompanhava os monges da abadia de São Vitor — que diz que “o temor do Senhor é o principio da Sabedoria (Prov. 9,10)”; por isso, a sabedoria tem um caráter sacro, e a investigação intelectual será um prescrutar das pequenas verdades que tem sua fonte na Verdade Eterna, que faz do sábio, do filósofo e do amante da sabedoria em geral um teófilo, alguém que encarna em sua vida o primeiro mandamento de amar o Senhor Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a inteligencia. 

O adágio tomista de que “todas as coisas, tendendo a seus próprios fins e perfeição, tendem a Deus, que é o Fim Último e Suprema Perfeição” é um modelo que inspira a investigação das realidades criadas como referentes tambem a teologia, e por isso, a humildade exigida ao estudante não é só algo interior, mas tambem uma atitude em relação à realidade exterior. Para estes — que certamente ficariam escandalizados com os delírios desconstrucionistas contemporâneos — , nós não criamos a realidade, mas sim, nos submetemos a ela. A filosofia medieval — tachada de “teocentrica demais” — parece portanto ser menos “teocentrica” que a visão contemporânea dos seres humanos como pequenos deuses criando a realidade social, ontológica, moral, etc. Há um realismo muito grande; não criamos a realidade, nos submetemos a ela. E a virtude que nos dá essa capacidade é a humildade.
Diferentemente de alguns fideísmos protestantes e dos sentimentalismos contemporâneos dentro da teologia, Hugo vê no estudo da sabedoria não um empecilho para a vida espiritual, mas sim uma forma de ascender cada vez mais. Assim como dirá Santo Tomas nos primeiros capitulos da Suma Contra os Gentios um século depois, o Abade de São Vitor também vê o genuino filósofo como sinônimo do teófilo, daquele que ama a Deus, e vê no estudo da sabedoria uma aproximação Daquele que criou tudo com sabedoria. 

Tendo explicado a importância da vida moral e espiritual na vida do intelectual cristão, podemos avançar na importancia que Hugo dá ao estudo das artes liberais para o desenvolvimento do estudo das disciplinas mais altas e nobres (Teologia Sagrada; mais especificamente, o estudo das Sagradas Escrituras).

Como o mestre que escreve para iniciantes, em seu Didascalicon expõe três preceitos prévios quanto a leitura (que como veremos, é princípio da doutrina): (i) Saber o que devemos ler; (ii) a ordem com que devemos ler e (iii) como devemos ler.
Quanto ao primeiro, diz respeito à importancia de se escolher bem os livros a serem lidos, principalmente em uma era onde muitos livros supérfluos são publicados e que nos fazem perder um bom tempo que poderiamos usar lendo os realmente importantes, os que vão nos auxiliar nos estudos mais nobres e os próprios estudos sagrados. Esse conselho preliminar do Didascalicon — que pode parecer restritivo — parece se contrapor ao conselho do mesmo autor no Opusculo Sobre o Aprender e Meditar, de que não se deve desprezar e nem tratar qualquer escrito como vil. Mas é claro que, como um bom escolastico faria, precisamos fazer certas distinções que farão claras as coisas.
O estudante deve ter uma certa atitude de abertura perante a realidade, perante os conhecimentos; e aqui, Hugo cita o ensinamento paulino “provai de tudo, ficai com o que é bom” (Ts 5,21), que é uma amostra dessa atitude. De fato, também Sertillanges usa a analogia do garimpo e da peneira para fazer visível: o intelectual (e no caso do opúsculo, o estudante) deve saber extrair da lama a sua melhor substancia, saber tirar dos pedregulhos, areia, galhos, o que de ouro se oculta nestes, mesmo que seja pouco. Obviamente isso não é um incentivo a vã curiosidade, prejudicial ao progresso intelectual, mas sim uma atitude que deriva diretamente da virtude da humildade.
Ao descobrir nossa situação, de forma realista, e o quanto não sabemos e precisamos ainda aprender, adquire-se uma posição de aprendiz, que ligado ao primeiro conselho, busca aprender de todos, sem distinção — de tudo é possivel fazer o “garimpo” e retirar o minimo que seja de ouro.
Não é absurdo supor que o Mestre de São Vitor — ao aconselhar no inicio de seu Opúsculo: “não ter como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura” — não podia imaginar como as livrarias e bibliotecas de hoje estariam tão cheias, mas ao mesmo tempo tão vazias. Nem sequer se passava por sua mente, que um dia os livros não seriam mais tão dificeis de serem encontrados, e que os livros classicos — tratados em sua época como tesouros — seriam hoje abandonados pela nova moda “literária”(utilizando aqui uma analogia imprópria ao chamar o que vemos hoje de literatura) de cada mês.

Bem, mas não é muito útil saber quais livros devem ser lidos se não se sabe qual a ordem da leitura. Bons livros, quando lidos fora da ordem (cronológica, de complexidade, de importancia para a disciplina), podem causar mais confusão e prejudicar mais o crescimento intelectual do que simplesmente não ler nada. Por essa razão, a ordem de ler os livros essenciais é extremamente importante para o estudante.
Sabendo o que ler e a ordem dessas leituras, devemos saber como ler cada uma delas e tirar o melhor proveito de cada uma para o avanço nos estudos. Alguns livros irão exigir uma leitura mais meditada por sua densidade, outros, nem tanto. Alguns levarão tempo para um bom fichamento, em outros talvez não seja necessário que seja feito. Alguns precisarão ser relidos (e estes são geralmente os mais relevantes), outros servirão apenas para mapear um debate mais amplo dentro do objeto do estudo. Sobre o modo de ler, o próprio livro há de impor ao estudante, que irá com o tempo descobrindo a maneira mais facil de aprender e reter na memória o aprendido, ordenando o mais importante a ser memorizado e conectando as diversas impressões que podem haver em comum com outros estudos. 
Estes parecem ser alguns conselhos úteis àqueles que são buscam cultivar uma vida intelectual, vindos diretamente do distante século XII até nós. E mesmo que pareça haver uma disparidade entre esses tempos, a substancia dos conselhos de Hugo permanece intacta para o homem contemporâneo; ainda hoje o que cultiva a vida intelectual ainda é tido por louco por seu silencio, por sua disciplina, por sua conversa silenciosa, sua grande — e por vezes solitária — conversa com os gigantes do passado, etc. Mas a todos estes que o tem por louco, a resposta do Mestre de São Vitor permanece valorosa:
“…alguém poderia se dirigir a um filósofo dizendo: ‘tu não vês como os homens zombam de ti?’ E, em resposta ele diria: ‘sim, eles zombam de mim, mas deles zombam os asnos’.” (Didascálicon — A Arte de Ler)

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Ronald Dworkin: um resumo sobre sua teoria da interpretação e da decisão judicial.

Texto escrito como resposta à uma questão acerca da teoria de Ronald Dworkin na atividade avaliativa da disciplina Introdução ao Estudo do Direito I, ministrada pelo prof. Dr. André Luis Coelho, no Centro Universitário do Estado do Pará. Adaptado. Dia 12/06/2017.
Ronald Dworkin
As teses de Dworkin sobre interpretação e decisão judicial precisam ser compreendidas a luz de certos pontos importantes da primeira fase de sua obra. Acerca da tese de Dworkin sobre a interpretação, ele faz uma distinção entre a interpretação construtiva e conversacional, sendo a primeira usada para interpretar instituições politicas e obras de arte e a segunda sendo uma mensagem que parte de um emissor a um destinatário. A interpretação construtiva é bem sucedida a medida que sua interpretação dota o objeto de maior valor específico, por exemplo: quando se olha para um quadro pintado por um artista dadaísta, pode-se interpreta-lo de varias formas (alguns dizem que não faz sentido, outros que representa algo banal, outros afirmam haver nuances e sutilezas de valor artístico, existencial e catártico), mas a interpretação considerada correta será a que dotar o objeto de maior valor específico (no caso, a opnião da sutileza artística seria a interpretação correta sobre o objeto). A interpretação conversativa( que parte de um emissor a um destinatário) é bem sucedida a medida que a intenção original do emissor é alcançada, por exemplo: uma carta pode ter varias interpretações e vários interpretes que podem usar como chave de leitura um sentido poético, alegórico, politico ou literal, e neste caso a interpretação correta será aquela que melhor se adeque a intenção do emissor (o objetivo dele ao escrever a carta, as circunstancias e etc). Ainda na tese sobre a interpretação, Dworkin usa o exemplo do romance em cadeira, que busca mostrar que a interpretação é ao mesmo tempo um ato de continuidade e de criação; o exemplo imagina que temos 4 (ou mais) pessoas que pretendem criar uma historia, onde um inicia o primeiro capítulo e os demais dão continuidade a historia; o primeiro tem uma liberdade quase que total para criar: pode escolher o gênero literário, os personagens principais, e antecipar alguns traços característicos do gênero; o segundo terá uma certa liberdade criativa, mas não poderá fugir de forma radical do gênero escolhido (ele não pode matar o personagem principal com um ataque zumbi se o primeiro capituulo indica que a historia é do gênero comedia), e neste caso é também um ato de continuidade, e segue-se este esquema nos seguintes capítulos. Ao usar este exemplo para explicar o Direito, ele compara a constituição ao autor do primeiro capitulo (com sua liberdade quase total devido à ausência de limitações formais), a legislação ao segundo capitulo (esta deve se basear e não contradizer a constituição, mas tem possibilidade criativa dentro de certos limites), os precedentes seriam o terceiro capitulo e as decisões judiciais (nas quais são usados os precedentes) seriam o quarto capitulo.
Ao tratar das decisões judiciais, Dworkin primeiro critica a tese do positivismo de Hart (ou pelo menos o positivismo de Hart compreendido por ele) segundo a qual o Direito seria um conjunto de regras (primárias e secundárias) e nada mais, e afirma que a tese é incapaz de explicar o uso de princípios jurídicos nas decisões judiciais. Mas para Dworkin, é possível dividir o gênero princípios jurídicos em duas espécies (o gênero principio seriam ditos em latu sensu): os princípios em strictu sensu e as politicas (policies); o primeiro (strictu sensu) diz respeito as exigências de justiça, que protegem o individuo contra os interesses da comunidade e recordam a tese dos direitos como trunfos, e o autor defende que o lugar característico de uso dos princípios em strictu sensu é o judiciário, pois este não é eleito e não é pluralista, e portanto, os direitos devem ser salvaguardados como trunfos do individuo. Já as politicas, como dizem respeito à coletividade, são características da esfera do legislativo (mas este também pode se basear em princípios strictu sensu) por este ser democraticamente eleito e ser pluralista, e por isso pode ter melhores condições de decidir em nome da comunidade questões como saúde, educação, saneamento, distribuição, etc.
Ainda ratando de interpretação e decisão, Dworkin defende sua famosa tese da única resposta correta, que diz que em todos os casos há uma e só uma resposta correta. Essa tese contem duas versões: a versão forte e a fraca. A versão forte defende que de fato há uma — e só uma — resposta correta para cada caso e que para descobri-la basta procurar bem e sera encontrada; já a versão fraca afirma que mesmo que o juiz não acredite que só há uma resposta correta para cada caso, ele deve agir como se houvesse. A tese da única resposta confronta duas posições antagônicas entre si: o ceticismo e o pluralismo. O ceticismo afirma que não podemos conhecer a resposta correta de cada caso (se é que há uma resposta correta), e Dworkin critica essa posição ao afirmar que ela confunde a incapacidade de conhecer (ou dificuldade) com inexistência: ora, não é porque não podemos conhecer a resposta correta que teremos a conclusão de sua inexistência, e argumentar o contrário disso, para Dworkin, é cair na falácia ad ignorantiam (apelo a ignorância). O pluralismo afirma o contrário: que não é que haja apenas uma resposta correta, senão várias respostas corretas, e esta posição é criticada por Dworkin quando ele afirma que aceitar tal posição pode levar à arbitrariedade decorrente do grande numero de respostas possíveis, e portanto, Dworkin conclui que esta é uma posição inaceitável (e é interessante que Dworkin não chega a refutar o pluralismo, mas apenas mostra sua inconveniência e a rejeita).

A Vida Intelectual — A.D. Sertillanges (Excertos).


Estes são alguns trechos que recolhi da minha leitura do livro. É um livro repleto de pérolas a garimpar, e que cada página possui uma profundidade tal que não é possível esgotar tudo o que uma leitura atenta pode oferecer. Um ditado diria que “ler é reler”, ou dizendo melhor, um bom livro é aquele que merece uma releitura; pois bem, este merece várias releituras.
Uma indicação valiosa, para os que se interessarem pela leitura do livro, é o canal do Youtube “As Travessias: Literatura e Filosofia”, que contem comentários capítulo por capítulo deste livro. São excelentes. Link: https://www.youtube.com/channel/UC7CJJ3Ih0dX8VccstD1QbNQ

Prefácio à segunda edição:

“Querem os senhores compor uma obra intelectual? Comecem por criar em seu interior uma zona de silencio, um hábito de recolhimento, uma vontade de despojamento, de desapego, que os deixem inteiramente disponíveis para a obra; adquiram esta disposição das faculdades mentais isenta do peso de desejos e de vontade própria, que é o estado de graça do intelectual. Sem isso, não farão nada, em todo caso, nada que valha.”
  • A submissão intelectual à verdade
“O intelectual não é filho de si mesmo; ele é filho da Ideia, da Verdade Eterna, do Verbo criador e animador imanente a sua criação. Quando pensa corretamente, o pensador segue Deus a risca; ele não segue sua própria quimera. Quando tateia e se debate no esforço da busca, ele é Jacó lutando com o anjo e ‘forte contra Deus’.” (SERTILLANGES, 2010, p.12)
  • Razão natural e a fé.
“A razão tem por ambição apenas um mundo; a fé lhe da a imensidão.” (Ibdm, p. 18)

Capítulo I: A vocação intelectual.

  • Analogia: o intelectual e o atleta.
“Os atletas da inteligencia, tal como os do esporte, devem prever as privações, os longos treinos e uma tenacidade as vezes sobre-humana. É preciso entregar-se de todo o coração para que a verdade se entregue. A verdade só esta a serviço de seus escravos.” (p. 22)
  • A vocação intelectual
“A humanidade cristã é composta de personalidades diversas, dentre as quais nenhuma abdica sem empobrecer o grupo e sem privar o Cristo eterno de uma parte de seu reinado. (…) Não sejam infiéis a Deus, a seus irmãos e a si próprios rejeitando um chamado sagrado.” (p. 22–23)
  • A verdade é prêmio do labor.
“Obter sem pagar é o desejo universal; mas é um desejo de corações covardes e de cérebros enfermos. O universo não acorre ao primeiro sussurro, e a luz de Deus não aparece sob a nossa lâmpada sem o rogo de nossa alma.” (p. 23)
  • A lógica viva.
-Logica viva: “Desenvolvimento de nosso espirito, ou verbo humano, por seu contato direto ou indireto com o Espírito e o Verbo divino, esse estudo grave e essa prática perseverante lhe abrirão a entrada do santuário admirável” (GRATRY, apud SERTILLANGES, p. 27)
“A solidão vivifica tanto quanto o isolamento paraliza e esteriliza.”
  • Toda verdade teórica é também prática.
“O verdadeiro cristão manterá permanentemente diante dos olhos a imagem desse globo onde a cruz esta fincada, onde os humanos necessitados erram e sofrem, e onde o sangue redentor, em filetes numerosos, procura vir a seu encontro. A porção de claridade que ele [o intelectual] detém o reveste de um sacerdócio; o que ele quer alcançar com isso é uma promessa implicita de dom.
Toda verdade é prática; a mais abstrata em aparencia, a mais elevada, é tambem a mais prática, Toda verdade é vida, orientação, caminho em vista do fim humano. Eis porque Jesus Cristo disse como uma afirmação unica: Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida.”

Capítulo II: As virtudes de um intelectual cristão.

As virtudes comuns: “A virtude contem a intelectualidade em potencial, pois, conduzindo-nos a nosso fim, que é intelectual, a virtude equivale ao supremo saber.” (p.31)
  • O bonum e o verum
“O verdadeiro cresce na mesma terra que o bem, suas raízes se tocam. Se arrancados dessa raiz comum e por isso menos ligados à sua terra, um ou o outro padecem, a alma fica anêmica ou o espírito debilitado. Pelo contrário, ao alimentar o verdadeiro ilumina-se a consciência; ao fomentar o bem, guia-se o saber.” (p. 32)
  • A virtude e vida moral
“A virtude não é a saúde da alma? E quem ousará dizer que a saúde não interfere em nada na visão? Perguntem ao oculista. Um clínico inteligente não se limita a medir a curvatura do cristalino e a escolher armações de óculos; (…)ele se preocupa com seu estado geral,com sua dentição ,com seu ritmo de vida, com suas vísceras. (…)
Como farão para pensar adequadamente com uma alma doente,com um coração triturado por vícios,dilacerado pelas paixões, desorientado por amores violentos ou culpados? Há um estado de lucidez e um estado de cegueira da alma,dizia Gratry,um estado são e,consequentemente, sensato, e um estado insensato. ‘O exercício das virtudes morais’,nos diz por sua vez Santo Tomás de Aquino, ‘virtudes pelas quais são refreadas as paixões ,importa sobremaneira à aquisição da ciência’ . (SERTILLANGES, 2010, p. 33)
  • Vida intelectual e vida de oração.
“Estudar tanto que não mais se pratique a prece, o recolhimento, que não mais se leia nem a palavra sagrada, nem a dos santos, nem a das grandes almas, tanto que se caia no esquecimento de si mesmo e que, de tão concentrado nos objetos do estudo, se chegue a descuidar do hóspede interior, é um abuso e uma enganação. Supor que assim se progredirá mais equivale a dizer que o rio fluirá melhor se sua fonte secar.
A ordem do espírito deve corresponder à ordem das coisas. No real, tudo se eleva ao divino, tudo dele depende, porque tudo dele provém. Na efígie do real em nós, as mesmas dependências se manifestam, a menos que tenhamos transtornado as relações do verdadeiro.” (p.39)
  • Notas:
(i) Disciplina do corpo: As boas disposições corporais auxiliam as disposições intelectuais.
(ii) Espirito de oração: Beber da Fonte da Eterna Verdade para reconhecer melhor as pequenas verdades que nos remetem para àquela, suprema.
(iii) Unidade entre vida intelectual e vida moral.

Capítulo III: A organização da vida

(i) Simplificar, eliminar futilidades e inimigos da laboriosidade,
(ii) A solidão auxilia no trabalho intelectual (lembrando que distingue-se do isolamento, que é prejudicial a este).
(iii) Cooperar com seus semelhantes.
(iv) Equilibrio entre vida ativa e contemplativa.
(v) Preservar o silencio interior.
  • Solidão e silencio.
“A solidão que lhe é recomendada é menos uma solidão de lugar que uma solidão de recolhimento; ela é elevação mais do que afastamento; ela consiste em se isolar pelo alto, graças ao dom de si as coisas superiores e mediante a fuga das leviandades, das divagações, da mobilidade e de toda vontade caprichosa; ela realiza a conversatio in caelis do apóstolo ao levar nossa morada e nosso trato ao céu dos espiritos. Tenham a inspiração interior, o comedimento, o amor daquilo a que se entregaram, tenham ao seu lado o Deus da Verdade, e estarão sozinhos em pleno universo.” (p. 65–66)

Capitulo IV: O tempo do trabalho.

  • O intelectual não é insensível ao mundo.
“Adquiram então o hábito de estar presentes nesse jogo do universo material e moral. Aprendam a olhar e confrontem o que se apresenta aos senhores com suas ideias costumeiras ou secretas. Não enxerguem numa cidade unicamente casas, mas vida humana e história. Que um museu não lhes mostre quadros, e sim escolas de arte e de vida, concepções do destino e da natureza, orientações sucessivas ou variadas da técnica, do pensamento inspirador, dos sentimentos.
Que uma oficina não lhes fale somente de ferro e de madeira, mas da condição humana, do trabalho, da economia antiga e recente, das relações de classes sociais. Que as viagens lhes ensinem a humanidade; que as paisagens lhes evoquem as grandes leis do mundo; que as estrelas lhes falem das durações incomensuráveis; que os pedregulhos do caminho representem para os senhores resíduos da formação da terra; que a visão de uma família se una a seus olhos à das gerações , e que o menor relacionamento lhes traga informações sobre a mais elevada concepção do homem. Se não souberem olhar assim, não se tornarão ou não serão mais que um espírito banal. Um pensador é um filtro em que a passagem das verdades deposita sua melhor substancia.” (SERTILLANGES, 2010, p. 70)

A figura do jurisconsulto laico no direito romano clássico

Este texto tem por base um trabalho feito para a disciplina História do Direito e do Pensamento Juridico, no Centro Universitário do Estado do Pará. Feito no primeiro semestre de 2017.

O Jurisconsulto Laico surge da cisão entre sacerdócio e profissão jurídica. Anteriormente, no período arcaico, havia uma intensa unidade entre as funções jurídicas e religiosas; por exemplo, os costumes e as leis derivadas destes surgem da religião romana arcaica — a dos lares (ou penates)- , e várias noções de autoridade e propriedade provinham desta religião, por exemplo, a autoridade do juiz ou do próprio chefe surge como extensão da autoridade sacerdotal do pater famílias, e a propriedade privada atinge um status sacro a partir da religião domestica dos termos [para uma investigação mais profunda do tema, vide livros I e II do livro A Cidade Antiga — Fustel de Coulanges].
A partir dessa constatação histórica, é possível notar que o Jurisconsulto Laico é uma ruptura com a antiga ordem de autoridade, baseada na autoridade dos Pontífices. O ponto histórico mais importante para compreender essa ruptura, segundo Bretone, é o Plebiscito de Olgúnio, que abriu à plebe as portas do colégio dos Pontífices. E assim, o conhecimento do direito ficaram ao alcance de todos os cidadãos.
A função do Jurista — e antes função exclusiva dos pontífices (por sua autoridade jurídica e religiosa, que eram praticamente indistintas) -, era dar pareceres sobre questões que dizem respeito ao direito. Outra característica importante do Jurisconsulto é o seu caráter aristocrático, ou seja, o jurisconsulto era encontrado geralmente em famílias que tinham condições materiais suficientes, de modo que não necessitem ``sobreviver´´ da atividade política: ``O nascimento da virtude e do exercício das funções ´politicas exigem liberdade dos empenhos do trabalho cotidiano´´(Aristóteles,citado por Bretone).
A preparação intelectual do jurisconsulto era feita por meio da leitura de textos de outros juristas e também por meio das artes liberais (principalmente a Retórica) e da Filosofia. Percebe-se que este é um homem culto, letrado e que devia a isto muito de seu prestigio.
A função do jurisconsulto era dar pareceres em público sobre casos particulares (o Pontifice fazia o mesmo privadamente). Um trecho do livro Obras Esparsas, de Guilherme Braga , resume bem tais funções : ``De fato, era sempre por meio de responsa, isto é, de resposta às consultas formuladas. (…) consistia em dar pareceres acerca de problemas controvertidos do direito, sobre a interpretação das leis e dos costumes ou sobre os direitos e obrigações resultantes de um ato jurídico já realizado.´´(Pg. 161); mas ele também tinha a função de aconselhar (cavere) em questões jurídicas, e por fim o trabalho de elucidar (agere) as partes sobre o processo, indicando-lhes certos gestos e fórmulas para fazer valer o seu direito. (Ibid. 168).
O Jurisconsulto não recebera salário ou pagamento por tais consultas (e por esse motivo é temerário afirmar ou fazer uma analogia do jurista romano com o advogado moderno), mas se importará em aumentar seu status e influência política, e exemplo disso é que muitos juristas influentes na época se tornaram cônsules ou alcançaram algum grande cargo politico posteriormente; sua atividade mantia seu prestigio politico. Encerra-se esta questão com os exemplos dados por Braga da Cruz no já citado livro: ```temos os numerosos exemplos de jurisconsultos que ascenderam ao consulado, depois de terem percorrido, um por um, os vários graus hierárquicos do cursus honorum, desde à questura à edilidade curul e à pretura´´(pg. 158). Assim, percebe-se que a atividade jurisprudencial era acompanhada, na maioria das vezes, por exercício de cargos públicos.
Fontes:
BRETONE, Mario. Uma Profissão Aristocrática
COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga
BRAGA DA CRUZ, Guilherme. Obras Esparsas Vol I : Estudos de Historia do Direito — Direito Antigo

A Fama irrecuperável: As consequências da calúnia.

                                 Extemplo Libyae magnas it Fama per urbes, /                                   Fama, malum qua non aliud vel...