À mim coube expor sobre a contribuição de Santo Agostinho de Hipona (354 - 430), Doutor da Graça e da Caridade, que já se tornou para mim um intercessor, amigo e mestre no estudo da Fé. Considero fazer 4 aulas - o que é pouco, absurdamente pouco, para os que sabem o imenso Corpus deixado por ele -, tentando fornecer uma visão geral que não seja apenas biograficamente detalhada ou intelectualmente robusta, mas também espiritualmente edificante.
A dificuldade que se impõe é semelhante à de um engenheiro que precisa construir quatro finas calhas para fazer escorrer às águas do Oceano Atlântico. É preciso eleger quais são as partes do Oceano que podem desaguar melhor na diversidade de cidades que pretende alcançar, para que as regiões e seus habitantes não morram de sede - pela escassez -, nem morram afogadas pela inundação de algo que não tem meios de conter. Outro desafio é poder oferecer água nova, para os que tem sede: muito já se falou sobre Santo Agostinho e não há biografia mais conhecida que a dele, e sendo assim, falar sobre ela, explicando cronologicamente, não seria apenas tentar refutar o axioma corretíssimo de Heráclito que diz que "um homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio?"
Em busca de uma solução para essas dificuldades, voltei para o oficio do professor quando precisa preparar um curso: revisão bibliográfica. Lenta, atenta, constante, diligente, amorosa, reverente, essa me parece ser a forma com que se deve aproximar-se de temas como esse, buscando não cair na suprema tentação e supremíssima burrice de pensar que a sabedoria se encontra e se encerra na leitura. Iniciei - e ainda estou no momento - lendo o clássico Santo Agostinho: Uma Biografia, de Peter Brown, e apesar de ser um livro de um acadêmico - e um acadêmico que até onde me consta é um agnóstico -, tem um valor inestimável para os que procuram conhecer com exatidão os passos do santo bispo de Hipona. Vejamos algumas de suas principais luzes que me forneceu:
Em primeiro lugar, pensei que em minhas mãos estava um livro estritamente e escrupulosamente histórico-cronológico, mas foi em um de seus primeiros capítulos que encontrei a chave para uma compreensão adequada de Santo Agostinho: é inadequado ler As Confissões como um livro de um historiador que observa um fenômeno da perspectiva externa - vendo os eventos, as reações externas trazidas por estes, etc -; e isso porque Santo Agostinho inaugura com sua obra uma nova maneira de fazer autobiografias - um gênero frequente na Antiguidade Tardia, mas elevado à seu cume com o bispo de Hipona -, mas sim como alguem que vive "desde dentro" a tudo o que acontece.
É por isso que se pode dizer que é preciso entender esta autobiografia como a história da conversão e evolução do coração de Agostinho. A inteligencia quer captar os eventos em sua ordem de sucessão, mas o coração tem em si uma marca daqueles eventos que o esmagaram e tiveram o poder de transfigura-lo, que o fizeram dar vida à todo corpo - como uma diástole amorosa, extática - ou o fizeram arrefecer - como a morte de um amigo, que o fez ver todo o mundo como cinza. Caso eu seguisse interpretando As Confissões como uma descrição cronológica, como poderia explicar que sobre seu pai fale ele tão pouco, e sobre o roubo de peras dedique tantas páginas? Como explicar que seu irmão e sua irmã não apareçam nas memórias de infancia, mas que haja um esforço imaginativo enorme para que tente desvendar os movimentos concupiscentes de um bebê ao chorar pelo seio materno?
Só posso me render a dizer que não é a homens que ele fala, que não é com tinta humana que escreve aquelas paginas, não é com propósitos externos que prescruta o que prescruta, mas sim é à Deus que escreve, suas confissões são uma grande Epístola à Deus - como Newman se referiu a elas certa vez - e em sua caminhada para Ele, foi preciso recordar, trazer de novo ao coração todas as coisas nas quais Agostinho viu o Senhor moldar nele. As Confissões tem por protagonista não ao Santo Doutor, mas o Deus Uno e Trino e a maneira com que conduziu o coadjuvante das sombras para a Luz que ilumina todo homem que vem ao mundo; é acerca de Deus que se escreve do inicio ao fim, e a busca do coadjuvante por ascender à Ele se inicia quando descobre que o Logos que pensava ter descobrido entre os platonicos "se fez carne e habitou entre nós", descendit de caeli.
Assim, parece que encontrei uma abordagem ideal para expandir: a evolução e formação do coração de Santo Agostinho por Deus. E como são insondáveis as obras Daquele que conhece até o numero de nossos fios de cabelo, é claro que sempre será limitado o escopo de exposição, e só vai ser possivel conhecer o que há dentro pelos vestigios que o Santo Doutor deixou pelas suas obras, aliando e associando de que maneira em sua biográfia se moveu seu coração, e como seu coração em chamas - como muitos quadros o expressam - moveu sua biografia, e como esse coração inflamado iluminou e expandiu os horizontes de sua inteligencia, que alimentando-se da Fé e do Amor, pode escrever que sua razão nada mais queria conhecer senão à Deus e aos homens. É um longo e arduo percurso, e sim, o resultado final - se formos muito otimistas - são vestígios apenas, mas não se diz desde Aristóteles que é preferivel conhecer uma parcela ínfima das coisas mais altas do que conhecer infinitamente as coisas mais baixas?
Como complemento, pude ler a Carta Apostolica AUGUSTINUM HIPPONSENSEM (1986), de São João Paulo II, que comemora o decimo sexto aniversário da conversão de Santo Agostinho (386). Procurei esta carta como busca por uma abordagem alternativa, também espiritual, e gostei do que li: ele inicia por relatar a conversão a partir das Confissões, passando pelo passado maniqueista, sua mentalidade intelectualista na rejeição das Sagradas Escrituras, as lagrimas de sua mãe até o retiro em Cassiaco. Na segunda parte, pontua cinco aspectos da obra de Santo Agostinho.
Em primeiro lugar, a relação entre a Fé e Razão: o Doutor, teve uma parte de sua conversão devida à leitura dos platônicos, e até mesmo sua rejeição do Maniqueismo teve raizes na leitura de Plotino, por exemplo, com relação ao problema do mal. Por isso, a razão sempre teve um lugar privilegiado para ele, mas ela precisa ser elevada pela Fé, ela precisa subir este degrau da Fé para que possa ser razão plenamente. É preciso entender, é claro, mas é preciso crer para entender - credo ut inteligam -, é preciso crer para que novos horizontes sejam abertos e tenhamos uma compreensão mais profundas sobre todas as coisas, para que, à Luz da Fé, nossa inteligencia seja iluminada para enxergar os aspectos mais profundos da realidade. É também preciso reconhecer o que há de verdadeiro nas filosofias pagãs, para que, rejeitando as falsidades que nela se misturam, se retome essa verdade à Verdade Última. Uma razão iluminada pela Fé é capaz de ver com mais profundidade, é capaz de ver a Deus, Seu Amor e Beleza no movimento das estrelas, nos beneficios gratuitos e na magnitude de Sua obra, é capaz de ver que não há beleza, bondade e verdade que não venha Daquele que é Sumamente Belo, Bom e que é a Verdade mesma (Jo 14, 6 ).
Em segundo lugar, a relação entre Deus e o homem. Esse é um dos aspectos que salta aos olhos na obra de Santo Agostinho, pois não há um só lugar em que ele fale sozinho, que esteja só, ou que fale somente aos homens: é à Deus que fala a todo o momento, o protagonista de suas Confissões é Deus e Sua obra, nos seus Tratados Teológicos ele se aproxima do mistério divino não como um cientista se aproxima do objeto de experimentos para determinar suas caracteristicas, mas sim como um amigo que quer amar e ganhar intimidade com seu Amigo, para que possa lhe ser dada a graça de conhecer Seus Mistérios e aposentos, para que este Amigo e Senhor Sapientissimo lhe livre de qualquer erro, assim como um apaixonado se aproxima da amada, temendo em tudo errar e deixa-la triste. Essa é a grande descoberta das Confissões: que o Deus que ele procurava com todas as suas forças, sem saber, habita no "mais intimo do meu intimo", e que para que ele possa conhecer a partir de suas memórias o que ele verdadeiramente é, precisa conhecer-se Naquele que o conhece mais do que tudo - o autoconhecimento depende então do quanto o homem está unido à Deus. O reconhecimento dessa presença em sua alma lhe fez descobrir que se o seu Amigo está em sua alma, não há momento em que não se possa estar em dialogo com Ele, e que o pregar, ensinar e escrever sempre eram feitos diante de e para o Deus que estando tão alto, tão transcendente, está tão intimamente em sua alma.
Em terceiro lugar, a relação entre Cristo e a Igreja: ele nos ensinou a Igreja é Mãe e Mestra, sem a qual não se pode-se dizer amar a Cristo. Nas Confissões, mostra que em sua conversão, o seu amor pelas Escrituras e sua riqueza surgiu - após uma decepção ao tentar comparar seu estilo com o de Cícero - a partir da autoridade docente da Igreja, personificada em Santo Ambrósio, até sua afirmação de que crê firmemente nas Escrituras porque lhe leva à autoridade da Igreja Católica que afirma sua veracidade, inspiração e inerrancia. Como apóstolo da unidade, se pôs a debater com os inimigos da Fé, como os maniqueistas contra os quais escreveu diversos tratados, os donatistas, que enfrentou em extenuantes debates publicos, os pagãos, contra os quais escreve sua obra longa e ardua A Cidade de Deus, para defender à Fé contra os ataques. Muitos desses livros fazem transparecer vestigios do trabalho extenuante que foi escrever tanto, e nisso se manifesta seu amor à Igreja; no inicio do seu De Trinitate, explica que escreve aquele livro não porque estava com vontade, mas porque a Caridade de Cristo o puxou exigindo assim como uma biga puxa brutalmente uma carroça.
O quarto aspecto é a relação entre liberdade e graça. Não há homem que tenha descrito tão perfeitamente o conflito interno do homem acerca da liberdade e graça quanto Santo Agostinho - e talvez aqui entre a ligação entre doutrina e biografia da evolução de seu coração.
O que foi sua conversão ao maniqueismo senão o desespero de ver que nossas paixões muitas vezes entram em revolta com a razão? E desespero ao ver que homem algum consegue se livrar dessas tentações? É também um sentimento de culpa que o invade ao perceber, como São Paulo, que "não faço o bem que quero, mas o mal que não quero". O Maniqueismo aparece assim como alternativa confortante, uma vez que este mal que se faz não é de nossa responsabilidade, e sim do principio maligno que luta contra o principio benigno divino do qual somos emanações, particulas. Santo Agostinho vê no reconhecimento de nossa condição caida e de nossa culpa um ponto de partida fundamental para que reconheçamos a superabundância da Graça de Deus (Ler Alfredo Alonso Garcia, para aprofundar)
Por fim, São João Paulo II nos convida a refletir no que Santo Agostinho pode ensinar para o homem moderno.
Em primeiro lugar, a busca do Bispo de Hipona pode inspirar muitos daqueles que, buscando a verdade, podem cair em desespero e receio de não encontra-la. Sua vida afirma violentamente que "todo aquele que busca a verdade, busca a Deus, ainda que não o saiba" (frase atribuida a Santa Edith Stein, salvo melhor juizo), afirma também que só na Verdade pode repousar o coração humano, e que "permanece inquieto o coração" enquanto não repousa a inteligencia na Verdade Eterna, não repousa o apetite no Bem Infinito e o coração no Amor que o formou para ama-Lo.
Outro ensinamento valioso é que, no meio do caos do mundo contemporaneo, no meio da sua complexidade caracteristica e de barulhos ininteligiveis que tornam loucos os homens, Santo Agostinho recorda que o que deve ocupar a mente humana é saber quem é Deus e quem é o homem, e assim ordenar sua vida à Ele. Para os leitores modernos, que vivem um "Enciclopedical Dream", filhos do Dr. Fausto, com ansia de conhecer o todo sobre tudo, continua a ser um desafio buscar a satisfação de seus desejos com a mesma resposta de Santo Agostinho à sua Razão no seu diálogo Solilóquios: -R:"O que desejas saber?", A:"Sobre Deus e sobre a alma [humana].", R:"Nada mais?" A: "Nada".
Parece que essa organização consegue reunir os aspectos centrais de sua obra, e é possível a partir disto, aprofundar no desenvolvimento de seu coração enquanto expresso nas Confissões e nas Cartas (essas últimas, abundantemente citadas por Brown para adentrar no coração de Santo Agostinho). O aspecto mistico e espiritual - que ja se evidencia muito na perspectiva da biografia do coração - parece que pode ser complementado na leitura de Etienne Gilson (Introdução à Filosofia de Santo Agostinho) e nos vestigios na obra do Doutor, na qual ele revela suas principais preocupações e motivações, manifestando assim muitos aspectos místicos e contemplativos.
Um projeto interessante - e que não sei se ja foi feito - seria analisar o amadurecimento intelectual e mistico e Santo Agostinho atraves dos vestigios de suas cartas, e nos termos das Moradas do Castelo Interior. É um projeto arduo, talvez não seja factivel, mas que pode nos ajudar a compreender melhor o Agostinho por tras de cada obra. A Psicologia dos Temperamentos pode ser útil para descobrir e supor algumas coisas sobre o que está por tras de cada escrito, o que e como sofre esse coração humano e seu sentido diante de cada fato biográfico, e assim por diante, tomando por hipótese que Santo Agostinho era sanguineo - já há um relativo consenso neste sentido -, temperamento inflamado (como revela uma pintura dele), explosivo mas afável, cuja tinta com que escreve é o próprio sangue, que precisa de companhia e está sempre com amigos, cuja eloquencia revela essa disposição expansiva própria deste temperamento. Pode ser um bom complemento, e para que se tenha algum proveito espirtual prático, penso em incluir algumas reflexões de Peter Kreeft em seu comentário às Confissões, I Burned For Your Peace (Ignatius Press, 2016).
É preciso, como me disse meu irmão ao planejarmos este ciclo de formações, descobrir o sentido doutrinal da vida e dos escritos desses Doutores.
Revisão de Bibliografias nesta semana, e avanços em outros temas ja iniciados. Na semana passada terminei o Inveja dos Anjos, de Stephen Jaeger, grande livro sobre o humanismo medieval do séc. XI e XII. Escreverei sobre ele na proxima vez.
-->LEITURAS PARA APROFUNDAMENTO (Referencias e para reler)
The Holy See APOSTOLIC LETTER AUGUSTINUM HIPPONSENSEM OF POPE JOHN PAUL II TO THE BISHOPS, PRIESTS, RELIGIOUS FAMILIES AND FAITHFUL OF THE WHOLE CHURCH ON THE OCCASION OF THE 16TH CENTENARY OF THE CONVERSION OF ST. AUGUSTINE, BISHOP AND DOCTOR August 28, 1986 (https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/en/apost_letters/1986/documents/hf_jp-ii_apl_26081986_augustinum-hipponensem.pdf)
LIBERTAD Y GRACIA EN SAN AGUSTÍN DE HIPONA Alfredo Alonso García Universidad de Cantabria (https://dadun.unav.edu/bitstream/10171/35548/1/201402CAF214%282009%29-15.pdf)
I Burned For Your Peace (Ignatius Press, 2016). Peter Kreeft.
Peter Brown, Santo Agostinho: Uma Biografia
Etienne Gilson, Introdução ao Estudo de Santo Agostinho
Daniel Rops, A Igreja dos Tempos Barbaros.
Santo Agostinho
As Confissões
Solilóquios e a Vida Feliz
A Trindade
Sobre a Potencialidade da Alma
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