segunda-feira, 6 de abril de 2020

Narrativas da Educação na Idade Média: as contribuições de Stephen Jaeger para a compreensão do Humanismo Medieval.


Hoje em dia, todos sabemos da contribuição da Igreja na origem e progresso das Universidades, tal como conhecemos hoje. Com muito acerto se apresenta o século XIII como o ápice da Baixa Idade Média, porque é precisamente neste século que temos constituidas as maiores realizações deste século das luzes: as Universidades, que receberam as maiores inteligencias do tempo, gerando intelectuais como Santo Tomás de Aquino - e sua magnifica Suma Teológica - e São Boaventura; na arquitetura, este é o século em que se ergueram as maiores Catedrais, nas quais o povo medieval acorria em massa para as celebrações liturgicas; este também é o século que gera intelectualmente a Dante Alighieri, e nos quais há uma renovação impressionante nos estudos filosóficos - a redescoberta de Aristóteles havia se dado não há pouco tempo - e juridicos - com a transição do método de glosas para o método de Comentários ao Codex Iuris Civilis.

Mas como foi gestado este século? Geralmente, três narrativas se constroem acerca deste periodo:

(i) A primeira é a narrativa - simplista, imprecisa e falsa em seus traços gerais - de que a Idade Media foi um periodo de mil anos (cujo inicio se dá em 476, na Queda do Império do Ocidente), no qual nada houve de intelectualmente digno de nota. Um periodo no qual a Igreja Católica é uma espécie de vilã que luta para manter o povo na ignorância com um notável anti-intelectualismo (como a narrativa do filme O Nome da Rosa e de filmes de ficção altamente influentes no imaginário popular, como o Código da Vinci). Neste sentido, não há propriamente uma história da educação, senão uma história - mal feita - da cultura, sob as lentes de um materialismo histórico dialético, no qual todas as estruturas culturais são nada mais que formas de dominação social com roupagens religiosas.

(ii) A segunda narrativa - mais precisa históricamente, e consistente em traços gerais - distingue a Idade Média em dois grandes periodos principais: (a) A Alta Idade Média e a (b) Baixa Idade Média. A primeira teria por inicio 476, Queda do Império do Ocidente, até 1054 ou 1075, indicando a data do Cisma Grego - quando a Igreja de Constantinopla entra em cisma com a autoridade Papal - ou a publicação do Dictatus Papae, pelo Papa Gregório VII - no qual se reafirma e aprofunda as consequencias juridico-canonicas da autoridade do Papa sobre a administração da Igreja. A Baixa Idade Média teria por inicio a Reforma Gregoriana, ja citada, na qual se clarifiica e formula de maneira canonica a autoridade pontificia, e tem fim ou no século XV (Queda de Constatinopla) ou XVI (Revolução Protestante de Lutero, em 1517).

Quanto a essa narrativa, a Alta Idade Média pode em alguns matizes ser considerada um periodo de Trevas (alguns historiadores afirmam indistintamente as Trevas em todo esse periodo, o que nos parece incorreto, como será explicado mais a frente; outros qualificam o adjetivo de "Trevas" a periodos especificos, como o século VI e VII, no qual a produção intelectual e as manifestações culturais são como que bárbaras, e o século X, século de Invasões dos Nórdicos e crises na Igreja -simonia, nicolaismo, escandalos na catedra pontificia. É possivel conceder quanto ao século VI e VII, e conceder de maneira qualificada quanto ao século X, por entendermos que essas crises são de natureza politica e administrativa, não implicando trevas culturais necessariamente.

A Baixa Idade Média seria então o periodo das Luzes, nas quais as instituições desenvolveram-se em suas formas maduras, gerando as universidades, as produções intelectuais e culturais mais desenvolvidas (a Suma de Aquino, a Comédia de Dante, as Universidades e a Catedral), e na qual podemos considerar o periodo àpice da Cultura Ocidental. Esse retrato é fiel às mais recentes pesquisas historiográficas, mas tem algumas dificuldades, de - como todo o quadro geral - ter dificuldades de considerar as grandes crises sociais da época e a diversidade da(s) idade (s) media (s), como a peculiaridade da Itália, as revoltas sociais (como a Pataria italiana) e religiosas (o problema cátaro/ albigense e valdense). Ainda assim, é um quadro consistente acerca da Baixa Idade Média, ainda que não se possa dizer o mesmo quanto à Alta Idade Média.

(iii)Uma terceira narrativa, que concordando em linhas gerais com a segunda (sobretudo com relação à Baixa Idade Média), explicita mais minuciosamente os aspectos distintivos da Alta Idade Média, é dada por Stephen Jaeger ( ) em seu grande livro A Inveja dos Anjos. Ali se busca responder as principais questões a respeito da transição da Alta para a Baixa Idade Média e acerca das caracteristicas próprias da Alta Idade Média, e criticando alguns pressupostos historiográficos comuns entre medievalistas que os fazem muitas vezes cair em engano com relação às formas culturais e intelectuais da Alta Idade Média, julgando-os por critérios intelectualistas e próprios de culturas literárias/textuais. Passaremos a expor essa terceira narrativa mais extensamente, buscando mostrar as contribuições da obra de Jaeger, que está para o estudo do humanismo medieval como a Paideia de Werner Jaeger está para a história da educação dos gregos.

Relembremos, em linhas gerais, as linhas do tempo de cada narrativa
(1) (...) --> Idade Média (476-1453) --> (...).
(2) (...)--> Alta Idade Média --> Baixa Idade Media --> (...)
(3) (...) --> Alta Idade Média (Periodo Crítico [V-VIII], Renascimento Carlingio [IX-X], Periodo Otoniano [X-XI, transição entre Alta e Baixa Idade Média] --> Baixa Idade Média (Escolas Independentes e Reformas Monasticas - Cluny e São Vitor, por exemplo [XI e XII], Universidades e Escolástica [XII e ápice no XIII], Crise [XIV, laicização, Estados Nacionais, crise com Felipe o Belo] --> (...).

Como podemos considerar então a Alta Idade Média? Tomando como marco convencional a Queda do Império Romano do Ocidente (476), temos uma situação completamente nova socialmente e culturalmente: o Império Romano se muda para o Oriente, para Constantinopla, e o Ocidente fica à merce dos Francos, Godos, Hunos e outros povos, chamados "Bárbaros" - o que equivale a dizer "não-romano". Nesta situação de crise, grande parte das instituições romanas mais desenvolvidas foram definhando, e grande parte da inteligencia romana acabou por migrar para a nova Cidade Imperial. Não tendo quem guiasse as cidades muitas vezes, os homens mais bem educados do Ocidente eram os homens da Igreja, e sobretudo os bispos - que muitos historiadores consideram os protagonistas da Alta Idade Média quanto à resistencia ao furacão barbaro - e monges - que nos mosteiros preservaram os grandes monumentos intelectuais e literários da destruição e saqueamentos (nem sempre com sucesso: vários mosteiros foram incendiados no processo), e estes foram os que tomaram as redeas da sociedade nesse periodo de dois a tres séculos de invasões bárbaras - lembramos a imagem de São Leão Magno indo enfrentar Átila, Rei dos Hunos, e São Gregório Magno, também Papa, a cuidar dos abastecimentos da Cidade de Roma nos periodos em que estava sitiada.   

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Dessa influencia direta sobre a sociedade, e comando até em assuntos administrativos - uma vez que não haviam homens competentes para tal na época - se deu até a união com os Francos (sobretudo com Pepino), e a partir deste momento, esse comando foi se dando de forma indireta - mas não por isso menos intensa. 

A difusão dos Mosteiros, sobretudo pela movimento Beneditino, a partir da aliança com os Francos se prepara para tornar o centro de toda educação medieval e também centro a partir do qual surgirão as futuras cidades medievais - arquitetonicamente, é possivel ver que as cidades medievais surgiram sempre ao redor de um mosteiro. Pode-se dizer que a vida era regulada por aqueles sinos, pelo momento do Oficio Divino, pelo calendário litúrgico e trabalho rural.

Consideremos o primeiro grande evento para compreender o Humanismo Medieval Monástico, cujo ápice é no século XII, é a Coroação de Carlos Magno e as Reformas Carolingias sob Alcuino. Este sábio monge que muito auxiliou o Imperador, sistematizou e colocou as artes liberais (Trivium e Quadrivium) como grade curricular nas escolas monásticas. Neste periodo, o modo de estudar as artes liberais tinha algumas notas peculiares, por sua inserção na cultura monástica, como por exemplo, a predominancia de uma abordagens carregada pelo estudo dos mores como disciplina (cf. Stephen Jaeger). 

Isso quer dizer que, a lógica, a Gramatica e a Retórica não eram estudadas como disciplinas autônomas e para fins intelectuais apenas - como se estuda hoje, muitas vezes - mas sim como meio para aperfeiçoamento moral. É interessante notar que o estudo do Quadrivium, na disciplina da Astronomia, não se buscava aprender as leis dos movimentos do cosmo sobretudo, mas sim desvendar o que ele nos diz simbólicamente, por seus números e ciclos, que possuem chaves alegóricas para serem desvendadas: o numero 3 descoberto no movimento das estrelas poderia facilmente significar a triade das faculdades da alma, inteligencia, memória e vontade, ou alguma vestigio da Trindade Santissima que nos leve a elevar nossa alma à consideração das coisas divinas, por exemplo. 

Aqui também se distingue muito propriamente o fim da educação: é sobretudo formar homens letrados que possam servir como Bispos - cujo raio de influencia, na era Carolingia, ultrapassava muito à um administrador de Dioceses - e clerigos educadores. Esses homens haviam de ser educados em toda sorte de costumes sociais respeitaveis e finos, como o modo de andar, de falar, de ensinar e outros.

Com o fim da Dinastia Carolingia e inicio da Dinastia dos Otões, a base institucional da educação passa a ser sobretudo as Catedrais e a Corte. E aqui, o papel administrativo dos Bispos e Clerigos em geral se torna muito maior, e pode-se até mesmo dizer que a educação, ao transladar-se para as Catedrais e Cortes, se torna um "quintal" para o serviço administrativo. Já aqui vemos que apesar de mantidos os mores como essenciais às disciplinas, subjacentes a todas elas, vê-se que os mores são cada vez menos aqueles próprios a um monge, e mais próprios a um funcionário da corte; temos aqui, sobretudo, os civiles mores, próprios da conduta administrativa, sendo um bom bispo identificado não necessariamente com o santo, mas com o parcimonioso administrador.

O terceiro grande momento da educação europeia medieval é o surgimento das Escolas Independentes de Paris do século XII, que virá a gerar as Universidades no século XIII. Aqui temos a raiz da escolástica e da cultura textualizada, com um método sistematizador. E é a partir desse momento que se considera o ápice da Baixa Idade Média, o que pode-se até conceder, mas contanto que não se afirme a narrativa de que antes do século XIII nada havia de cultura que pudesse chamar-se com esse nome. Por simplificações como essa que Jaeger (p.372) é cético para termos generalizantes como “cultura moral cristã medieval” que se encontra no século XIII, pois essa generalização pressupõe um critério logico enganoso: o da riqueza textual de um Abelardo, Santo Tomás, etc. Essa cultura não é a mesma em todos os periodos da Idade Média. 

O que distingue esse humanismo cuja origem temos no século IX  e seu declinio no século XII e prepara o século XIII?

Em primeiro lugar, a transferencia da corte real/imperial para as escolas catedrais e novo vigor dos mosteiros. Quando, ao fim da Dinastia dos Otões, o movimento monastico ganha novo vigor, sobretudo com as Reformas de Cluny, e põe sobre sólidas bases esse modelo de educação, que Jaeger chama de "carismática", porque é baseada sobretudo não sob textos e auctorictates intelectuais, mas sim no carisma pessoal do professor que ensina. A educação consiste então, em uma mimesis do carater luminoso do professor, de seus mores exemplares e virtude provada, e o aluno é tão melhor quanto mais se assemelha a este. Alguns textos da época nos remetem a analogias próprias desse periodo, como a marca do carimbo feita na cera e a do barro moldado pelo oleiro: assim é o mestre, que marca no aluno com as virtudes próprias que deve conquistar, assim o oleiro que molda o aluno segundo a imagem de virtudes morais. Essa imagem do professor é sugestiva, mas também é se considerarmos a posição do aluno: passiva e receptiva, pois o carimbo das virtudes só pode bem reluzir na cera se ela esta mole, passivel a ser marcada; também o barro tem de estar dócil à mão do oleiro, e assim também o aluno nas mãos do professor.

Depois, o fato de que a educação das disciplinas do Trivium e Quadrivium são vistas sob o aspecto ético delas. Assim, diferentemente do século XIII, que privilegia o aspecto Lógico e Dialético do Trivium, no Humanismo do século X,XI e XII tem como disciplina central a retórica, considerada uma disciplina verdadeiramente política-administrativa - no periodo Otoniano - e a disciplina própria do mestre monge - que pelo seu belo discurso, imprime nas almas a virtude. Esse aspecto é central para distinguir os periodos. A chave para entender essa cultura das escolas do século XI e XII, o humanismo que surge ali, está nas palavras litterae et mores. Era uma educação em duas frentes, intelectual e ética, na qual se primava pela segunda, e tendo como obra pronta o homem bem educado, que é como que barro modelado nas mãos do seu professor, que tem de possuir autoridade pessoal, carismática, mais que autoridade intelectual e textual. Essa formação dos mores exteriores se devia sobretudo por um principio pedagógico pressuposto: o que diz haver uma identidade entre interior e exterior, sendo o segundo manifestação do primeiro e o primeiro educado pelo segundo, com uma polaridade entre ambos, sendo que a educação dava conta dos dois aspectos, levando muitas vezes a duas direções: à da sobriedade e moderação e a do luxo e opulência.

Assim, é justificado que Sthepen Jaeger inicie seu livro com uma bela citação de São Bernardo, em sua carta a uma virgem de nome Sofia. Ele diz:
“Ó, com que arte a disciplina modela cada postura do seu corpo de menina e, mais ainda, da sua mente! Ajusta a angulação do pescoço, dá o jeito às sombrancelhas, compõe a expressão do rosto, direciona os olhos, modera a risada, controla a ira, arruma o semblante. [...] Que gloria se pode comparar à virgindade assim adornada? A gloria dos anjos? Um anjo tem virgindade, porém não corpo; ele é mais feliz por isso, certamente, porém não mais forte. O melhor e mais desejável ornamento é aquele que até os anjos poderiam invejar.” ( Carta à virgem Sofia)
Com essa citação ele antecipa todo seu argumento do livro, e também é representativo para nos mostrar a diferença entre o século XIII e o Humanismo que o precedeu: Se a obra do Século XIII é a Suma Teológica, podemos dizer, de certa forma, que a obra do segundo é a virgem Sofia, o homem e a mulher bem formados nos mores e litterae, formados como barro nas mãos do mestre ou como a vela de suave cera que deixa que o sinete bem a marque (cf. Hugo de São Vitor), como modelo de virtude. O produto do século XI não são livros, mas o homem bem formado; havia indistinção entre intelectual e moral, e o corpo e a presença física eram os meios principais de educar. Se nos séculos seguintes se leem livros, no século XI, se lê o corpo disciplinado – e até mesmo a palavra documentum significava o exemplo vivo de um homem. 
A Idade Média, os monges e o progresso | Cléofas

Nesse humanismo ainda não tinham-se em mãos as obras de Aristóteles, e por isso, os filosofos pagãos por excelencia eram Cícero e Socrates, considerados os principais modelos intelectuais de uma cultura educacional que primava pela presença do professor, pois todos sabem que Sócrates também nunca escreveu nada - e pelo seu discipulo, Platão, sabemos que não era entusiasta da filosofia escrita - , e sua sabedoria estava em sua presença pessoal, em sua filosofia viva. 

No século XII, vamos chegando a decadência desse modelo de educação e o surgimento do modelo escolástico e universitário, cujo embate de modelos se manifesta paradigmaticamente no conflito entre São Bernardo (cultura monástica, carismática) x Pedro Abelardo (cultura universitária, lógica e textual). O modelo monástico tentou sobreviver ainda no século XII, mas ja era decadente,e pode-se dizer que o renascimento do século XII consiste no esforço de materializar e preservar em obras o carisma do século XI que se esvazia. No século XII, o carisma se torna fabuloso,  simbólico, perdendo assim sua realidade. Se no século XI podemos dizer que é a cultura de Sócrates, a do século XII é a de Platão, que tenta, por escrito, preservar a presença viva, física e carismática do mestre.

Enfim, não se deve pensar nesse período como árido, por não se encontrar obras escritas da magnitude de um Santo Tomás ou São Boaventura, mas sim observar os mestres em sua presença carismática, pois esse é o critério com o qual devemos julgar a grandeza intelectual desse priodo, e usar outro critério que não este seria anacronismo: julgar o século XI e até fins do sec. XII em sua educação carismática sob as lentes intelectualistas e escolásticas das sumas do século XIII.

Mais estudos desse periodo serão apresentados aqui, em outros posts.

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