domingo, 24 de março de 2019

As Fundações do Pensamento Político Moderno - Quentin Skinner (Parte I)

Esta é uma síntese do livro clássico As Fundações do Pensamento Politico Moderno (Companhia das Letras, 1996), de Quentin Skinner. Cobre apenas a parte I  (As Origens da Renascença) do livro. Pode ser útil para estudantes de História da Filosofia Politica e do Pensamento Juridico. Espero que ajude! 

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Quentin Skinner (1940- )

Skinner tenta buscar as origens do pensamento politico moderno na Itália do séc. XIII e em seus ideais de liberdade e independência politica. Ao contrário da narrativa tradicional, já podemos encontrar as raízes da Renascença nesta Itália dos séculos XII e XIII.

Para compreender o contexto no qual nasce essa forma de pensamento político, precisamos ir ao Norte da Itália no século XI até a primeira metade do século XII, nas quais as cidades já não tinham caráter feudal, o governo era consular, e os cônsules trocavam de cargo quase anualmente. As principais cidades neste modelo eram :Pisa (1085), Lombardia, Toscana, Milão (1097), Arezzo (1098), Luca, Bolonha, Siena (1125).

Já na segunda metade séc. XII, o modelo consular entra em declínio, e há a ascensão do podestà - funcionário eleito investido de poder supremo - que parece ser uma forma mais estável de governo, se comparada com a forma consular. Esse é o modelo de republicas independentes em grande parte do Norte da Itália no fim do séc. XII, que apesar de tudo, não foi privada de conflitos, que começam a surgir nos inícios do século XIII, com facções internas, ameaça à liberdade e autonomia italiana e a ascensão de déspotas e signores .

Esse modelo era algo inovador no conjunto do feudalismo medieval, e uma das teses de Skinner é de que o ideal de liberdade só pôde surgir a partir das condições politicas em questão. É curioso ver que juridicamente (de iure), essas cidades italianas eram vassalas do Sacro Império Romano, mas isso não tinha consequências práticas (de facto) em sua organização administrativa, podendo agir com uma independência grande, e sempre resistindo às tentativas de submissão de suas cidades aos suseranos. O recurso ao Papado inicialmente era um aliado contra o Império, mas depois passou a ser ameaça às liberdades conquistadas, pois muitas vezes, os Papas Juristas buscavam a legitimação de ambições seculares sobre o Regnum itálicum, como Bonifácio VIII e a Unam Sanctam (1302). Após a ameaça papal, alguns autores buscaram legitimar novamente a monarquia como possibilitadora da paz e da liberdade, como Dino Compagni (1255–1324), Dante Alighieri, Marsilio de Pádua (1275–1342) - que em seu Defensor Pacis, escrito em 1324, ataca as pretensões eclesiásticas temporais.

É sabido por todos que estudam a História do Direito que com o surgimento das Universidades, os estudos jurídicos de maior qualidade se concentraram na Universidade de Bolonha. Isso se deu porque os estudiosos de Bolonha tentaram solucionar algumas dificuldades legais nos estudos dos textos do Direito Romano, uma vez que havia um contraste entre a estrita observância ao Corpus Juris Civillis e outros textos de Direito Romano (cujo renascimento em seus estudos se deu no inicio do séc. XI) glosados nas Universidades italianas e a necessidade de defender-se das pretensões imperiais. Esse contraste se dava porque os textos favoreciam o Imperador e suas pretensões de domínio nas republicas da Itália. Surgem então, no inicio do século XIV, os Pós Glosadores, que tentavam solucionar esses problemas do domínio imperial.


Um dos pioneiros dessa escola de Pós Glosadores é Bartolo de Saxoferrato (1314–1357), que estudou em Bolonha e lecionou Direito Romano na Toscana e Lombardia. Sua pretensão - e a da escola que lhe sucedeu- era reinterpretar os textos romanos dando base legal para as cidades italianas, o que foi considerado uma ruptura com a escola de glosadores que o precedeu, que tinham o método de adequar os fatos ao texto legal; já Bartolo e os Pós Glosadores adequavam a lei aos casos e situações concretas.
Um dos instrumentos conceituais que usaram para isto foi a distinção entre o dominium imperial de iure e de facto. O imperador deve aceitar a situação de facto, ou seja, a de que os povos florentinos e outros não de prestam obediência. Bartolo, no seu comentário ao Digesto, diz que:
(…)no caso das cidades da Italia atual, e especialmente daquelas cidades toscanas que não reconhecem ninguém como superior a elas, julgo que constituem por si mesmas um povo livre, e portanto possuem o merum Imperium em si mesmas, tendo tanto poder sobre sua própria populaça quanto o imperador geralmente possui.” (Comentário ao Digesto)
Dessa forma, as Cidades governadas por povos livres constituem sibi princeps. Antecipa assim a tese de que “Rex in regno suo est Imperator”, e consequentemente, está em germe a tese da soberania nacional.


Tendo visto as condições políticas para o surgimento desse Renascentismo italiano, existem condições culturais e intelectuais que preparam este movimento, dentro do ensino da retórica e do pensamento escolástico.
O estudo da retórica - desde o século XI - ganha um papel politico importante, e seus desdobramentos levaram ao nascimento das obras de conselhos aos príncipes (Espelho dos Principes) - este estudo, da Ars Dictaminis, a partir do século XIII tem incorporada a Ars Arguendi, que consolida o papel político deste ensino.
A Escolástica, influenciada por Aristóteles - redescoberto há pouco na Espanha - , muda o paradigma de filosofia política e faz crítica ao agostinianismo politico predominante. Inúmeros italianos foram para Paris - centro dos estudos de Teologia Sagrada e de Aristóteles - estudar e regressaram e difundiram suas visões adequando às pretensões politicas das cidades. 
Junto com esse humanismo, e renovação do estudo dos autores latinos, surge um novo olhar à história de Roma: o melhor período teria sido o republicano e que o maior valor da vida política é a pax et concordia. Os principais autores deste período são Remigio de Girolami (+1319), Ptolomeu de Luca (+1327) - que conhecia e debatia com frequência com S. Tomás de Aquino, tendo completado a obra Do Governo dos Principes, de Aquino - e Marsilio de Pádua, que em seu Defensor Pacis (1324) defende a liberdade das cidades estado contra a intervenção da Igreja. A influencia desses autores é sintetizada por Skinner:
"(...)[A]s doutrinas de Marsilio e de Bartolo também tiveram uma importância ideológica imediata nas cidades-republicas italianas de seu tempo. Os dois pensadores não proporcionaram apenas a defesa mais completa e mais sistemática da liberdade republicana contra o advento dos déspotas: também introduziram um engenhoso método de se argumentar contra os apologistas da tirania em seus próprios termos. Como vimos anteriormente, a maior defesa dos déspotas de fins do Duzentos e de seus sucessores tomava a forma da tese de que, enquanto a conservação da liberdade republicana tendia a um caos politico, o governo de um signore unico sempre trazia consigo a garantia da paz. (...) É contra essa ortodoxia que a defesa da liberdade republicana montada por Marsílio e Bartolo tem de ser entendida. Eles concedem que o valor fundamental na vida politica consiste na conservação da paz. Mas negam que esta seja incompatível com a preservação da liberdade. A mensagem final que deixam para seus contemporâneos é, assim, que um povo pode desfrutar das bençãos da paz sem precisar perder a liberdade: e, para tanto, a condição é que o papel de 'defensor da paz' seja assumido pelo próprio povo." (SKINNER, 1996, p. 85-86) 


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