Este pequeno texto parte de um estudo que tenho feito acerca da recepção da obra de Santo Tomás de Aquino ( 1225—1274 ) na contemporaneidade. Trata-se de uma síntese da dissertação do Fr. Nicholas Case, O.P, “Thomisms: Methodological Plurality in the Study of St. Thomas Aquinas”(2013). Busca fazer uma discussão interna do tomismo contemporâneo, e investigar qual o fator de unidade e de divergências entre os diversos estudiosos da obra de Aquino, de forma a compreender como conclusões, metodologias e influencias tão diferentes podem ser unificadas sob o nome de “Tomismo”. Outro artigo que pode complementar este estudo, e que será uma fonte de inspiração para uma próxima postagem, é "Thomism and the Council"(1963, The Thomist), de Anthony D. Lee. Se esta pequena síntese parecer incompleta em alguns aspectos, se deve em grande parte à minha ignorância em relação a algumas correntes - por exemplo, das quatro correntes citadas, de três ja pude ler algo, mas do Tomismo das Fontes não li nenhum autor, e me reservo a fazer uma síntese da dissertação do Case.
Iniciemos refazendo uma pequena cronologia da recepção da obra de S. Tomás.
Logo após a morte do Aquinate, sua obra entra sob suspeita por sua influencia aristotélica — e os aristotélicos de seu tempo geralmente acabavam por defender teses heréticas — e tem 219 teses condenadas pelo bispo franciscano Etienne de Tempier em 1277. A partir dessa condenação, surgem algumas obras de caráter anti-tomista, como as de Willian de Mare, que em 1285 escreve sua “Correctorium Fratris Thomae”, e aprofunda a controvérsia contra alguns defensores de Tomás, como Richard Knapwell (+1288).
Avançando já alguns séculos, Aquino volta a ser estudado na Espanha sob o influxo de Francisco de Vitória(1483- 1546) e seus discípulos imediatos — Soto, Cano e Banez — , até o tomismo espanhol do Século de Ouro encontrar o seu ápice na figura do jesuíta Francisco Suárez (1548 - 1617), que no século XVI desenvolve uma forma de tomismo peculiar, eclético, que se põe no entremeio das teses de Tomás de Aquino e de João Duns Scoto. Se seus contemporâneos o veem como fiel seguidor de Aquino, os historiadores contemporâneos conseguem ver nele uma das maiores rupturas com o Doutor Angélico e o prelúdio da modernidade filosófica.
Papa Leão XIII (1810-1903) |
O último período seria o que inicia a partir da publicação — em 1889 — da encíclica Aeterni Patris, do Papa Leão XIII, na qual ele incentiva o esforço da inteligencia católica para refletir os problemas modernos à luz da Filosofia e Teologia do Doutor Comum. A partir desse período até nossos tempos, veremos uma diversidade de correntes de tomismos que parecerá estranho à um estudioso que queira analisar o retorno dos estudos na obra de S. Tomás de uma perspectiva externa: não basta dizer que o fator unificador é o objeto material, isto é, os temas estudados pelas ciências; sua diversificação se dá quando se considera sob qual formalidade o objeto está sendo considerado. São duas questões a serem feitas: (i) o que é focado neste objeto — seu objectum formale quod — , e (ii) de que forma isto é focado — seu objectum formale quo. Case diz que:
“Todos os diversos tomismos partilham em comum seu objeto material no corpus tomista. Mas o ponto de vista particular pelo qual este é discutido, isto é, seu formale quo e formale quod, diversifica-os. Aqui, como nas ciências especulativas, podemos ver por que diferentes formale quo e formale quod podem diversificar tomismos com base nos seus variados interesses, nos textos que cada tomismo escolhe analisar, bem como nem seus variados métodos filosóficos e teológicos ao interpretar e aplicar [a interpretação] ao texto.” (CASE, 2013, p. 16)
Fergus Kerr, em sua obra After Aquinas, divide os tomismos pós Aeterni Patris em quatro correntes principais: (i) Leonino, (ii) Transcendental, (iii) Analítico e (iv) Tomismo das fontes [Ressourcement Thomism].
O primeiro tomismo, o chamado Tradicional, ou Leonino, é aquele que surgiu imediatamente após a publicação da já referida encíclica. Teve autores grandes como Garrigou-Lagrange, Gallus Manser, Torrel, Edouard Hugon, mas acabou por ser muito criticado, uma vez que parecia se reduzir à uma discussão interpretativa da obra do Doutor Comum, e não uma filosofia vigorosa capaz de debater com as filosofias contemporâneas. Esta foi a impressão que seus autores menores e manuais latinos produzidos na época deu ao século XX, de um tomismo ossificado, de manuais, árido. Essas características foram muito criticadas pelo grande historiador da filosofia do século XX, Etienne Gilson, que escreveu em sua obra The Spirit of Thomism:
“…o escolasticismo tem sido mais ou menos um tipo de ensinamento repetitivo de escola, perfeito em seu aspecto formal e neste ponto superior à maior parte das filosofias modernas, mas pobre em seus conteúdos, incapaz de produzir novas ideias e ter um papel na interpretação racional do mundo moderno.” (GILSON, apud, CASE, 2013, p. 19)
Grande parte da produção era de conteúdo anti-moderno e anti-cartesiano, de tal maneira que se Case diz que o tomismo trabalha principalmente na questão da crítica do conhecimento — paradoxalmente, uma questão eminentemente cartesiana.
Um dos autores mais importantes dessa corrente, é Joseph Kleutgen (+1883), que buscava eliminar todos os resquícios de hegelianismo da filosofia católica alemã do séc. XIX. Sua obra buscou deduzir uma crítica à este aspecto da filosofia moderna a partir da formulação de 3 princípios fundamentais da filosofia tomista, que são, segundo Case:
“First, knowledge results from the fact that an image of the known object is produced in the knower by the concourse of the known object and the knower. Second, the known object is in the knower according to the mode of the knower. And third, knowledge becomes more perfect in proportion as the knower is more remote, by the nature of his being, from material conditions.” (CASE, 2013, p. 21)
Dessas teses deduz as bases de sua luta contra a filosofia moderna.
Os grandes problemas desse tipo de tomismo foram: (i) a sua interpretação nem sempre fiel a S. Tomas — de tipo suareziana — , (ii) a sua quase obsessão pelo problema epistemológico, e (iii) a sua aridez e pouca capacidade para refletir os problemas contemporâneos, uma vez que estava fechado em escola para qualquer influencia externa. Essa foi talvez uma das razões pelas quais o tomismo ficou muito tempo excluído das universidades seculares: parecia se reduzir a uma filosofia meramente eclesiástica.
Mas a bem da honestidade, este tomismo Leonino produziu muitos gigantes intelectuais. Todos conhecem a contribuição de Garrigou Lagrange - um dos maiores teólogos do século passado - em seus comentários à Suma Teológica, em suas obras de Teologia Dogmática e em seu livro "La Sintesis Tomista", no qual ele sintetiza e sistematiza os principais pontos da obra de Santo Tomás; outro autor que não pode ser esquecido é o Pe. Edouard Hugon, que escreveu - na minha visão - uma das melhores introduções à filosofia tomista "As 24 Teses da Filosofia de Tomás de Aquino", indispensável para qualquer iniciante; também temos as introdutórias de Gardeil, O.P, Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino, que é uma introdução não tão introdutória assim, sendo bastante densa para os que estão iniciando. Estes são alguns dos Leoninos que li até agora e que me parecem elevar esta "escola" à patamares altíssimos, e fazem contraponto justamente à esse tomismo árido e manualístico.
Mas a bem da honestidade, este tomismo Leonino produziu muitos gigantes intelectuais. Todos conhecem a contribuição de Garrigou Lagrange - um dos maiores teólogos do século passado - em seus comentários à Suma Teológica, em suas obras de Teologia Dogmática e em seu livro "La Sintesis Tomista", no qual ele sintetiza e sistematiza os principais pontos da obra de Santo Tomás; outro autor que não pode ser esquecido é o Pe. Edouard Hugon, que escreveu - na minha visão - uma das melhores introduções à filosofia tomista "As 24 Teses da Filosofia de Tomás de Aquino", indispensável para qualquer iniciante; também temos as introdutórias de Gardeil, O.P, Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino, que é uma introdução não tão introdutória assim, sendo bastante densa para os que estão iniciando. Estes são alguns dos Leoninos que li até agora e que me parecem elevar esta "escola" à patamares altíssimos, e fazem contraponto justamente à esse tomismo árido e manualístico.
Garrigou Lagrange (1877-1964) |
A segunda corrente, uma das mais controversas, chama-se Tomismo Transcendental, e é marcada principalmente por sua apropriação das categorias e temas da obra de Imannuel Kant para sua reflexão filosófica. O principal expoente dessa corrente é Joseph Marechal (+1944), que escreveu em 5 volumes a obra O Ponto de Partida da Metafísica, na qual busca responder quais são os fundamentos epistemológicos da metafísica se utilizando do método transcendental e a volta para o sujeito e buscando conciliar o realismo tomista e o idealismo kantiano. Para Marechal, o critica kantiana à metafisica não só não atinge o realismo metafisico de Santo Tomas, como também ao mostrar os limites do sujeito cognoscente, a própria crítica de Kant exige um fundamento real para a metafisica:
“If, as Marechal argued, Kant´s longing for epistemological unity was proof of the need for the absolute and vindicated return to realism, than surely Thomas Aquinas metaphysics was the best to use; after all, both already agreed metaphysics was natural and innate desire of the mind.” (CASE, 2013, p. 30)
A principal crítica a esta corrente é que, enquanto foge do pretenso “protecionismo” do Tomismo Leonino, acaba por cair em uma espécie de “acomodação” quanto às filosofias modernas, na maioria das vezes incompatíveis com o realismo metafísico de Santo Tomás ou com a Fé Católica, e por isso acabam por defender teses heterodoxas e modernistas, como Hans Kung e Karl Rahner, no período Pós Conciliar.
Essa corrente do tomismo foi muito influente, e teve como continuadores grandes filósofos, como o jesuíta Bernard Lonnergan, e alguns teólogos nada ortodoxos, como Karl Rahner.
Bernard Lonnergan (1904-1984) |
A terceira corrente, uma das mais frutíferas dentro dos ambientes acadêmicos e seculares, é a do Tomismo Analítico, que tem por principais expoentes Norman Kretzmann, Anthony Kenny, Eleonore Stump, Jan Pinborg e John Haldane. Os autores desta corrente constataram que uma das possíveis razões para o esquecimento da filosofia de S. Tomás nos ambientes acadêmicos, é a sua reputação eclesiástica que o faz parecer um autor relevante apenas para os problemas que a Igreja Católica enfrenta, mas não para os problemas da filosofia contemporânea, principalmente em sua matriz analítica. Essa corrente crê poder distinguir com clareza a filosofia de Tomas de Aquino de sua teologia, para torna-lo acessível aos ambientes seculares.
No Direito e na Ética, um autor se destaca: John Finnis (1940- ), cujas obras Lei Natural e Direitos Naturais e Aquinas foram intensamente discutidas e reabilitaram a filosofia tomista nas Universidades. Sua obra parte do insight interpretativo de Germain Grisez (1929-2018), que ao estudar a estrutura da razão prática, criticou grande parte dos interpretes do Aquinate e buscou reconstruir uma compreensão mais razoável do Primeiro Princípio da Razão Prática: "Bonum est faciendum et prosequendum et malum vitandum" (cf. Suma Teológica, I-IIae, Q. 94, a.2)
Eleonore Stump |
No Direito e na Ética, um autor se destaca: John Finnis (1940- ), cujas obras Lei Natural e Direitos Naturais e Aquinas foram intensamente discutidas e reabilitaram a filosofia tomista nas Universidades. Sua obra parte do insight interpretativo de Germain Grisez (1929-2018), que ao estudar a estrutura da razão prática, criticou grande parte dos interpretes do Aquinate e buscou reconstruir uma compreensão mais razoável do Primeiro Princípio da Razão Prática: "Bonum est faciendum et prosequendum et malum vitandum" (cf. Suma Teológica, I-IIae, Q. 94, a.2)
As duas principais criticas a este movimento é a sua negligencia aos aspectos históricos e das fontes do próprio S. Tomás, e também negligencia quanto ao desenvolvimento na compreensão de sua obra na história, a partir de seus defensores, comentadores do Século de Ouro, etc.
A ultima vertente, a chamada Tomismo das Fontes — em inglês, Ressourcement Thomism — surge de um movimento de retorno às fontes mais amplo, na teologia em geral, quando na década de 40–50 do século XX, buscou-se estudar novamente as fontes patrísticas com mais afinco, entender a história da teologia católica de maneira mais ampla — não a reduzindo ao periodo da escolastica — , interpretar a filosofia de Santo Tomás de maneira mais aprofundada a partir do conhecimento de suas fontes e se usar dessa reflexão para adentrar na análise dos problemas filosóficos e teológicos contemporâneos.
Ao contrário da crítica feita ao tomismo analítico, a este tomismo das fontes critica-se em razão de seu tratamento a temas exclusivamente teológicos, e parece deixar alguns problemas filosóficos contemporâneos sem um tratamento adequado, como a corrente analítica o faz.
Ao contrário da crítica feita ao tomismo analítico, a este tomismo das fontes critica-se em razão de seu tratamento a temas exclusivamente teológicos, e parece deixar alguns problemas filosóficos contemporâneos sem um tratamento adequado, como a corrente analítica o faz.
Analisaremos em próximos posts o desenvolvimento (ou decadência) do tomismo no período pós-conciliar, após a década de 60. Também resta analisar algumas correntes menores de tomismos, como o tomismo de Etienne Gilson e Cornélio Fabro - que investigaram a fundo o caráter do actus essendi - , os tomismos de cunho platônico, e algumas correntes neo-aristotélicas que influenciaram esta história.
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