Este texto surgiu a partir de uma palestra que fiz acerca da Filosofia do amor humano de Karol Wojtyla (São João Paulo II) - o livro que mais utilizei foi escrito na época em que ele era Cardeal - e busca assentar algumas bases antropológicas para o aprofundamento posterior da Metafísica do amor, Psicologia do amor e de sua analise Moral do amor (temas que serão tratados nas próximas postagens). É preciso dizer que a vida de São João Paulo II por inteiro foi a vida de um apóstolo, e o jeito apaixonado com que escreve mostra o quanto sua vida foi marcada pelo Amor, com "A" maiúsculo, o Amor que lhe explicou tudo, e que o moveu na Graça de Deus em seu pontificado. Deixo aqui este pequeno texto como homenagem a este grande homem de Deus que tanto amou a Cristo e Sua Igreja. Que ele interceda por nós junto à Deus!
Algumas leituras complementares e perspectivas de investigação possiveis:
"Thomistic Personalism: An Investigation,
Explication, and Defense" de Michael Camacho (disponivel em: https://dlib.bc.edu/islandora/object/bc-ir:102062/datastream/PDF/view) , onde o autor remonta as raízes do personalismo tomista e sua relação com a fenomenologia de Husserl e analisa se esta é uma abordagem necessária ou possivel, e busca sintetizar a estrutura da ação humana analisada por Wojtyla em sua obra filosófica magna:
The Acting Person".
Outro manual importante, apesar de ser sintético demais, é a obra
"RECENT CATHOLIC PHILOSOPHY THE TWENTIETH CENTURY" de Allan Vincellete, na qual o autor classifica Wojtyla como um dos expoentes do Neo-Tomismo (discordo quanto à sua classificação, pois creio que por sua obra e influencias se encaixaria melhor na corrente de "Fenomenologia", juntamente com Hildebrand e Edith Stein [Santa Elizabeth da Trindade]) juntamente com Etienne Gilson e Jacques Maritain,
De uma relevância extrema é um aprofundamento na obra do gigante Dietrich von Hildebrand (para uma introdução, aqui: https://aconsolacaodafilosofia.blogspot.com/2018/09/notas-biograficas-de-dietrich-von.html). De primeira, a pequena pérola escrita por
Hildebrand "O amor entre um Homem e uma Mulher" é um precedente importante para a obra de Wojtyla, e sou de opinião que o grande Cardeal de Lublin teve ao menos algum contato com a obra de Hildebrand. No mais, outra obra relevantíssima - que estou lendo no momento, por sinal - é o livro
The Nature of Love, que parece fazer uma das análises mais meticulosas e densas sobre a natureza do amor humano. Hildebrand é como que um dos pais da que ficou conhecida como Teologia do Corpo, pela sua reabilitação e investigação do papel do afeto para a vida humana, se afastando de uma visão um tanto quanto intelectualista ou voluntarista até então em voga.
Finalmente, outras duas indispensáveis são
Os Quatro Amores, de C.S Lewis, na qual o amor humano é também relacionado e iluminado pelo Amor Divino - este livro de Lewis, de todos é o menos denso filosoficamente, mas é relevantíssimo talvez por essa mesma razão; a última indicação, é a grande obra de
Juan Cruz Cruz "O Êxtase da Intimidade" , que revisa quase toda a bibliografia citada e tem um foco especial no tratamento do amor humano feito por Santo Tomás de Aquino.
Espero que possa ser útil!
Ad Majorem Dei Gloriam
1. INTRODUÇÃO E PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS.
Em nossa sociedade, a menção mesma de um trabalho sobre moralidade sexual causa espanto. Mas o espanto ao ouvir essas duas palavras juntas, apesar de serem idênticos tanto na velhinha puritana do século passado quanto no jovem progressista contemporâneo, parecem ter razões bem diferentes. Enquanto a velhinha puritana ficaria escandalizada com a explicitação da palavra “sexual”, o jovem ficaria abismado de estar em pleno século XXI e ter de descobrir que em vez de uma liberdade da moralidade, estão a lhe propor uma moralidade para a liberdade.
Essa reação de espanto não se deve ao fato de sermos exemplos de pudor, ou de excessiva reverência para com um tema tão importante, tampouco é que seja algo ocultado, mas sim porque vivemos em uma sociedade hiper sexualizada. O sexo já se tornou classe social, nota identitária, na qual se tem uma miríade de opções sexuais possíveis às quais o pertencimento já traz uma série de deveres e pautas a serem defendidas. Em nossas casas as novelas expõe cenas que poderiam ser classificadas facilmente como pornografia; nas redes sociais e na internet em geral o mesmo ocorre; nos filmes as cenas de sexo muitas vezes são pensadas como atrativos para atrair mais espectadores; na literatura popular, os “best-sellers” são romances eróticos; as músicas se esvaziam cada vez mais de qualquer conteúdo e passam a reduzir suas letras a palavras que buscam despertar a sensualidade dos ouvintes, etc.
Não é verdade que não falem do tema de moral sexual por ser um tema tão recorrente que qualquer coisa a mais poderia ser um adicional banal, mas sim a própria repetição frenética e explicita do sexo em todas as áreas possíveis banalizou o tema.Não é a palavra “sexo” que incomoda; não é por valorizarem o pudor que fogem do tema para guardar um valor moral, mas sim fogem do termo “moral” justamente por compreender o que seja pudor e temerem as exigências dos valores.
É preciso falar do tema justamente porque não se para de falar nele; é necessária uma análise séria sobre aquilo que para muitos não passa de brincadeira; é preciso estudar o amor em uma sociedade que, ao chamar qualquer coisa de amor, acaba por torna-lo qualquer nada; é preciso uma análise satisfatória sobre o tema do amor humano, pois o recorrente problema de identificar o amor com o máximo prazer, além de aniquilar qualquer possibilidade de amor, acaba também por acabar com o prazer, justamente porque só há prazer — como dizia G.K. Chesterton.
Dessa maneira, é preciso dar a conhecer a liberdade verdadeira do amor num ambiente que aprendeu que “é proibido proibir” e se esquece a lição do grande escritor inglês G.K. Chesterton, que dizia que “toda grande alegria se inicia com um pequeno veto”, e que onde se vê apenas a busca de libertar-se de qualquer verdade sobre o amor, essa “libertação” degenera em nada menos que escravidão.
Por fim, é preciso buscar a Fonte Verdadeira do Amor, sabendo que “Deus é Amor” (1Jo 4,8), mas sabendo também que dizer que o amor é deus é cair em uma das maiores decepções e enganos, uma vez que como disse C.S Lewis em seu clássico Os Quatro Amores, toda vez que se adora o amor como um deus, ele se torna um demônio.
Publicado primeiramente em vez em 1960, o livro é, ao mesmo tempo (i) uma resposta antecipada a todo o desastre que havia de ocorrer na Revolução Sexual de 1968, suas consequências sociais e politicas para a difusão de métodos contraceptivos, a ampla aceitação do aborto como método de tomada dos meios de reprodução femininos (Firestone, por exemplo), o enfraquecimento das notas de exclusividade e permanência dentro do matrimonio e até mesmo a relativização do próprio conceito de matrimônio; e por outro lado, é também (ii) uma antecipação da encíclica do Papa Paulo VI, Humanae Vitae, onde o amor esponsal ganha um tratamento especial a partir de uma análise na qual o amor dos esposos se une intimamente e se revela na fecundidade e na abertura à vida.
Dada a eminencia do tema, o Cardeal Wojtyla buscou assentar sólidos
fundamentos antropológicos de matriz personalista para que suas conclusões pudessem ser o mais profundas possíveis. Aqui, é preciso que recordemos que o personalismo filosófico teve o autor como um de seus mais eminentes representantes, tendo este sido um dos filósofos mais relevantes da
escola de Lublin (um dos três centros onde o personalismo floresceu com mais força, juntamente com dos
Estados Unidos e a
França de
Mounier) e fundado uma nova forma de pensar o personalismo, através das contribuições de
Santo Tomas de Aquino e sua antropologia filosófica, que ficou conhecida como
Personalismo Tomista. De fato, foi a partir de um ensaio apresentado na Universidade de Lublin no ano de 1961 que o termo “personalismo tomista” pode se difundir.
2.PRESSUPOSTOS ANTROPOLÓGICOS DE SEU PERSONALISMO.
Primeiramente, a antropologia filosófica que precede o estudo do amor humano tem por base alguns postulados (que podem ser melhor explicados em outro ensaio) próprios da filosofia tomista, quais sejam :
(i) A pessoa humana é uma unidade substancial de alma racional e corpo (de forma e matéria): de onde se exclui qualquer interpretação extremamente espiritualista (de que o homem é somente sua alma e que todos os valores materiais existentes devem ser desprezados) e também qualquer interpretação hedonista ou materialista (de que o homem é só corpo e que deve seguir todas as exigências deste). A pessoa por inteiro é este composto, e não se reduz nem a sua condição anímica, tampouco a sua condição corpórea. (ST, I, Q. 75, art. 4, resp 2)
(ii) a forma substancial de cada ente lhe provê um télos, um fim: ora, a alma racional do ser humano lhe dispõe para agir segundo a razão, para que seja plenamente razoável na escolha de seus meios e fins verdadeiros e assim possa se realizar nesta vida (beatitudo imperfecta) e na próxima pela ação da Graça Divina (beatitudo perfecta)
(iii) a alma é principio de organização da matéria, de movimento e de operação.
(iv) O homem possui livre arbítrio e capacidade de autodeterminação: esta livre arbítrio, por sua vez, tem seu valor subordinado à bondade dos fins que intende. Somente na vida segundo a razão que o ser humano é verdadeiramente livre. Buscar fins moralmente maus é como que uma escravidão. Quanto mais se afasta da razoabilidade do pensar e no agir, menos livre sera (este ponto por si ja poderia ser expandido, por sua riqueza).
Tomados esses pressupostos, o Cardeal Wojtyla começa por distinguir na realidade o que podemos chamar de “algo” (coisas) e as realidades que podemos chamar de “alguém”, ou seja, as realidades que não são meros objetos inanimados, mas de certa forma, são agentes. Os animais se encaixam nessa categoria de certa forma (forma imprópria), mas o ser humano esta mais propriamente e eminentemente nesta categoria, por ser pessoa. O autor assim expressa:
“O termo ‘pessoa’ foi escolhido para sublinhar que o homem não se deixa encerrar na noção de ‘individuo da espécie’; porque há nele alguma coisa mais, uma plenitude e uma perfeição de ser particulares, que não se podem exprimir senão empregando a palavra ‘pessoa’.” (WOJTYLA, 2016, p. 16)
As principais notas distintivas são que manifestam essa perfeição de ser particular são: (i) natureza racional, (ii) interioridade, (iii) autodeterminação fundada na reflexão e capacidade de escolher o que fazer — livre arbítrio — , (iv) Incomunicabilidade e inalienabilidade de si mesmo — alteri incommunicabilis.
Tendo visto essa diferença entre as pessoas e as coisas, Wojtyla busca formular o que ele chama de norma personalista. A pessoa é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito, é um ente objetivo-subjetivo:é uma realidade objetiva no mundo exterior, mas não é redutível a essa ordem da natureza física; possui também seu aspecto subjetivo, possuindo uma interioridade, uma vida interior que não é exteriorizada em todos os momentos. Ora, se a vida inteligente consiste em ordenar os bens segundo critérios objetivos (hierarquia dos valores) e subjetivos (plano de vida individual), e cada objeto possui uma hierarquia de valor determinada, a virtude — que para Santo Agostinho é ordo amoris — consiste em ordenar e tratar cada valor de forma reverente segundo sua relevância objetiva e subjetiva.
Assim, cada objeto de certa forma nos impõe uma certa reação, e a pessoa nos impõe uma atitude, atitude esta que se diferencia de nossa atitude perante as coisas (uma pedra, um brinquedo, etc).
Isto é algo que claramente provém de sua inspiração tomista, uma vez que Santo Tomás, ao tratar da alma como forma do corpo (ST, I, Q.76, art. 1, respondeo), vê que a forma é tanto mais nobre quanto mais domina a matéria corporal e quanto menos imersa na matéria esta; dessa forma a alma humana, possuindo capacidades que excedem a matéria corporal — a capacidade abstrativa que alcança os universais, por exemplo —e não dependem desta como causa (ainda que dependa como origem) é a mais elevada em nobreza. E mais do que tudo isso, à luz da Revelação, pode-se dizer que “o mundo das pessoas é diferente e, por natureza, superior ao mundo das coisas (das não pessoas), pelo fato de ter sido criado à imagem de Deus” (WOJTYLA, 2016, p. 34)
3. A CRÍTICA AO UTILITARISMO E A NORMA PERSONALISTA.
Às coisas nós podemos usar, podemos usa-las como meios para atingir nossos fins (jogo, técnica, etc), mas às pessoas, por sua eminencia na hierarquia de ser, a atitude exigida é o amor (que será estudado mais profundamente em outra sessão). Em razão de sua capacidade de determinar a si mesmo e escolher seus próprio fins, a pessoa humana não pode ser utilizada como simples meio para que se atinja um determinado fim. Não pode ser reduzida a um objeto que se “usa” e depois se joga fora. Aqui esse raciocínio se aproxima à formulação de Kant de que se deve tratar a pessoa sempre como um fim em si mesma, e não simplesmente como um meio útil para um outro fim.
Aqui entramos na critica à atitude utilitarista, que a partir de um calculo de utilidade, consequências ou prazer consideram todas as escolhas morais como relativas ao resultado final de mais prazer e menos dor (em um sentido mais lato). O utilitarismo, em suas duas vertentes (individualista e social) não é capaz de fornecer uma abordagem acerca do amor: (i) na vertente individualista, a pessoa com a qual me relaciono subordina-se como meio para que os fins almejados — isto é, a satisfação afetiva, sexual, intelectual — sejam alcançados, sendo o valor do meio algo relativo unicamente a consecução ou não deste fim; (ii) já na vertente social — que consideraria o principio do máximo prazer e felicidade não unicamente para o individuo, mas para o maior numero de pessoas possível — , Wojtyla vê uma contradição interna da teoria, uma vez que a categoria de prazer/felicidade (enquanto entendida pelos utilitaristas) “não é senão um bem atual e refere-se somente a um determinado sujeito, [dessa forma] não é um bem transubjetivo. Enquanto este bem for considerado a unica base da norma moral, não se pode esperar ir além dos limites do que é bom só para mim.” (WOJTYLA, 2016, p. 32)
Dessa forma, o amor surge como resposta à atitude utilitarista, o “amar” surge como o oposto do “usar”.Assim, a formulação feita da norma personalista é a de que “a pessoa é um bem em relação ao qual só o amor constitui a atitude apta e válida” (WOJTYLA, 2016, p.35).
Mas se por um lado a norma personalista nos mostra não ser licito usar a pessoa como um meio para simplesmente buscar prazer, instrumentalizando-a, não se pode também imaginar que o amor seja algo que exclua absolutamente qualquer satisfação ou prazer. Wojtyla mostra que em sua época — e pode se dizer que também na nossa — duas correntes predominavam quanto a essa questão: (i)Corrente freudiana, que interpreta o amor a partir do conceito de libido e (ii) a interpretação puritana, que pregava uma moralidade do amor humano como que “desencarnado”.
A primeira concepção vê o impulso sexual como uma expressão da necessidade que o homem tem de satisfazer sua voluptuosidade, que o determina “interiormente”(sua personalidade, etc). Dessa maneira, toda a complexidade do homem é reduzida ao impulso sexual e a voluptuosidade resultante do prazer, que é a libido (WOJTYLA, 2016, p. 55), e assim, o homem é rebaixado ou equiparado a um animal irracional, que age para satisfazer seus impulsos de forma determinista, e sua racionalidade, interioridade, liberdade são praticamente desconsiderados como fator diferenciador.
A segunda concepção é a de alguns moralistas e teólogos que viam a relação sexual entre os esposos como algo “tolerado”, algo negativo, como que um meio tolerado para o único fim bom e verdadeiro do matrimonio, que seria a procriação. Ora, assim como a primeira posição, essa acaba por reduzir o homem a seu aspecto espiritual, como se este excluísse o seu aspecto corporal. Esquecem o postulado da antropologia de Tomás de Aquino de que o homem não é só o seu corpo e tampouco somente sua alma, mas sim o composto: há uma unidade substancial entre alma e corpo, não acidental (como os platonicos imaginavam). O corpo tem um papel importante para a moral e para a teologia: exatamente essa verdade que permitiu o o Cardeal Wojtyla — ja enquanto Papa João Paulo II — pudesse falar de uma Teologia do Corpo. O fato de o Verbo ter se feito Carne e da Revelação ensinar que haverá uma Ressurreição dos Corpos mostra que o corpo não é ruim, algo de que o homem deveria se libertar para viver só como espirito. Essa visão puritana possui três problemas principais: (a) visão que beira à heresia maniqueísta, (b) antropologia filosófica dualista — cujos problemas serão melhor esclarecidos em outra sessão — e (c) a visão utilitarista do matrimonio que essa concepção acaba por implicitamente pressupor, uma vez que utiliza-se o cônjuge apenas para cumprir o fim procriativo, tendo-o como um meio para atingir o fim. Contra essa visão, o autor esclarece numa clave filosófica e teológica que:
“Existe um gozar conforme com a natureza da tendencia sexual e , ao mesmo tempo, com a dignidade das pessoas; no vasto campo do amor entre o homem e a mulher, o gozo tem sua origem na ação comum, na compreensão reciproca, na harmoniosa realização dos fins escolhidos juntos. Este gozar, este frui, pode provir tanto do prazer multiforme criado pela diferença dos sexos como da voluptuosidade sexual que as relações conjugais oferecem. O Criador previu este prazer e associou-o ao amor do homem e da mulher, com a condição de que, a partir do impulso sexual, o seu amor se desenvolva normalmente [plenamente, integralmente], isto é, de maneira digna de pessoas.” (WOJTYLA, 2016, p. 54–55).
Não é contrário às exigências da pessoa o fruir (frui) do prazer, o é somente o se utilizar da pessoa como um meio para o prazer, tornando-a instrumento, que se usa (uti) como objeto para um fim. O prazer aqui não é rechaçado, mas ordenado, subordinado ao amor — verdadeira resposta ao valor da pessoa.