segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O CÁRCERE DO HOMEM MAU LIVRE E A LIBERDADE DO JUSTO ENCARCERADO: AS LIÇÕES DO DE CONSOLATIONE PHILOSOPHIAE PARA O HOMEM DO SÉCULO XXI

A Consolação da Filosofia de Boécio 

                             Autor: Lucas Fonseca dos Santos (07/09/2020)                                                                                                                   

É no fogo que o ferro é provado, diz a Escritura, e esse provérbio é também válido para essa grande obra de Boécio - a sua mais conhecida: A Consolação da Filosofia, um livro escrito em circunstâncias tão adversas quanto o fogo por um homem com mais consistência que o ferro. E o resultado da prova do ferro é a consistência que conquista e que lhe torna apto a todo tipo de obra, sendo capaz de assentar sólidos fundamentos para uma construção firme. Assim também, a partir dessa obra é possível adentrar nos principais temas que ocuparam a mente dos filósofos de todos os tempos e encontrar uma fonte inesgotável de respostas instigantes - a resposta própria do sábio - e questionamentos instigantes - o amor próprio do sábio.

Homem de um período de transição, nasce em um tempo de profunda crise - logo após a Queda do Império do Ocidente (476) - , que vai tornando cada vez mais real o ocaso do intocável Império mundial que, segundo sua tradição própria, iniciou-se a partir de dois meninos, uma loba e se expandiu para grande parte do mundo conhecido até então.  Ainda que em periodo de decadencia, herdou pela educação a Civilização que em seus grandes edifícios e instituições desmoronava, de tal forma que sua cultura filosófica era verdadeiramente enciclopédica, contando com um profundo conhecimento tanto da literatura grega quanto latina e tendo por projeto a tradução para o Latim da obra de Platão e Aristóteles - e como bom humanista, “fazer as pazes” entre esses dois, mostrando que não discordam tanto quanto se pensava em sua época.

Quando a Itália foi dominada pelos godos, liderados por Teodorico, Boécio chega a ganhar uma certa proeminência política na corte, até que, ao tentar defender um Senador acusado de traição, é condenado à tortura e morte como cúmplice. Nesta situação desoladora e no ambiente inóspito do cárcere surge a obra na qual é prometida a consolação fecunda da alma do prisioneiro pela Filosofia, velha conhecida de Boécio. 

Entre tantas pérolas que podem ser encontradas nesta obra, pode ser de especial relevância para o homem de hoje considerar três lições que Boécio quer nos ensinar, várias lições do encarcerado e torturado livre para nós, presos nas cadeiras e na tela de celular que estamos a ler neste momento o texto. Em (i) primeiro lugar, Boécio ensina a revisitar sempre os tesouros que a memória guarda acerca de quem somos; depois, (ii) ensina a vanidade das coisas que os homens buscam, para ensinar-nos a não nos perturbar com essas coisas mais do que elas merecem; (iii) por fim, após mostrar o que não merece nossa perturbação, apresenta o que é a nossa única consolação, nossa felicidade, o unum necessarium. Façamos pois esse percurso, aprendendo sobre a liberdade com um prisioneiro, sobre a consolação e felicidade com um torturado aparentemente desolado e infeliz, e sobre o que é necessário ter com um homem que em mãos nada tinha. Aprendamos nós, tão frágeis, como ser fortes nas provas com férrea e heróica resignação e alegria. É a nós que a Filosofia também fala:

“Tu também, se queres/

 Com uma luz límpida/

 Discernir a verdade,/

 Renúncia a alegria,/

Afasta os prazeres/

 E também a dor./

 O espírito fica nebuloso/

 E aprisionado/

 Quando está sob seu jugo." (Livro I, 13)


  1. Ser sábio é ter boa memória.

O cantar é próprio daqueles que se alegram, mas também o é dos que choram. Mas a pergunta que importa fazer é: que voz conduz cada um desses cantos? 

Boécio, prisioneiro desolado, entre torturas, se lamenta de sua sorte junto às Musas, que cantam melodias tristes a fim de que ele se console pelas lágrimas e pela consolação dos sentidos. Essas Musas, como bem se sabe, são símbolos da poesia pagã antiga, que entre belas construções poéticas, incluía várias narrativas falsas e moralmente questionáveis (acaso não foi por isso que a República Platônica idealizava a expulsão dos poetas?). Era às Musas que Homero inicia a cantar em sua Ilíada, é a elas que pede inspiração para que escreva, e a comoção que causava o poema devia-se a elas também. Vendo quem consola o prisioneiro, como o faz e com que fim faz, podemos situar melhor o que se segue.

Subitamente, surge uma mulher de figura imponente, forte e bela, em cujas vestes - belas, apesar de rasgadas - se encontram as letras theta na parte superior e phi na parte inferior - representando a Theoria (mais elevada) e a Práxis (subordinada à primeira). Esta se apresenta ao prisioneiro com um afeto maternal, como se já o conhecesse, apesar de Boécio não conseguir reconhecê-la por causa das lágrimas que enchiam seus olhos.

Neste momento o leitor já poderia imaginar que esta mulher - a personificação da Filosofia - poderia salvá-lo da prisão em que se encontrava e das torturas que sofreu, e , paradoxalmente, é isso o que ocorre, e também é precisamente isto o que não ocorre. Como mãe zelosa, expulsa as Musas que cantam melodias vãs e inicia, como médica, a cura de seu paciente sofredor.

Como um paciente em doença terminal, o prisioneiro reage em um primeiro momento de forma arredia, mesmo após reconhecer que aquela Senhora em sua frente é a Filosofia. E assim reage porque, segundo ele, a razão de seu sofrimento presente é ter dado ouvidos à ela, ter procurado agir com retidão entre os poderosos do mundo, e ter sido por isso aprisionado. A Senhora Filosofia é então apresentada com um papel eminentemente terapêutico: é médica dos homens, que busca administrar os remédios de acordo com o doente e com a doença. Diligentemente, faz o exame no inconsolável Boécio, paciente agonizante de tristeza que beira o desespero, e , com algumas perguntas percebe que ainda que seu estado seja de um doente, a doença não se encontra tão grave que qualquer remédio seria sem efeito. 

Qual seria então o processo da cura? O primeiro cuidado após o exame é levar a cabo o processo de ensiná-lo - ou melhor, lembrá-lo - de tudo o que ele de alguma forma já sabia mas que foi aos poucos sendo esquecido com as solicitações do mundo. A Senhora Filosofia deixa claro que se compadece dele e que quer salvá-lo, mas não é pelas torturas que o prisioneiro sofre que se compadece e sequer do local do aprisionamento quer salvá-lo, mas sente compaixão e quer salvá-lo de sua ignorância - que, para ser mais preciso, é um esquecimento, uma doença em sua memória.

“Não é o aspecto deste lugar ou a tua tristeza que me comovem. Tampouco lamento as esplêndidas estantes ornadas de cristal e marfim de tua biblioteca, mas o que recolheste, não dos livros, mas do que dá vida aos livros: os antigos pensamentos a eles confiados (I,10)

Esse esquecimento é de suma importância na obra! É por culpa do esquecimento - e não da Filosofia - que o miserável se encontra naquele estado. Ele, grande cultor da Filosofia, sempre soube como as coisas deste mundo, do século, são passageiras, e ainda assim, se entristece quando estas coisas passam. Não é esta a suma ignorância - ou melhor, o sumo esquecimento? Essa repreensão o faz pensar e nos faz pensar até hoje o papel que o estudo da sabedoria tem em cada vida: será que nada mais é que um trabalho que desenvolve-se e se recebe a paga em dinheiro ao fim do mes? Será que nada mais é que conhecer as opiniões que os homens pensaram? 

A resposta é um categórico: não! E isso constitui uma das principais lições deste livro na história da filosofia, ensinando que, uma filosofia que não for viva, tende ao esquecimento, à sua morte. E que por isso, não tanto apenas no conhecimento é que a sabedoria tem que habitar, mas na memória.

Quando surge o vocábulo “memória”, a primeira associação que pode vir à mente é um mero repositório, uma caixa onde se guardam experiências apreendidas. Mas seria pobre a compreensão se permanecesse limitada a isto, uma vez que o papel da memória no tempo de Boécio é muito diferente daquele dado em nosso tempo. Basta lembrar que os livros eram artigo de luxo, caros, e que o que era lido, se não conservado na memória, se perdia e de nada valia; basta lembrar que os estudos das crianças em Roma na Antiguidade Tardia eram em grande parte memorização de poetas antigos - como Virgílio, segundo o testemunho de Santo Agostinho em suas Confissões - ; basta, por fim, lembrar que um dos teólogos mais influentes da época - o Doutor de Hipona - tinha em alta estima uma antropologia de tres termos: (I) Memória, (II) Inteligencia e (III) Vontade, que podem ser consideradas imagens imperfeitas (por não esgotarem Aquele de Quem são imagem) da Santíssima Trindade no homem (De Trinitate, Livro VIII).

É o mesmo Santo Agostinho que em suas orações sempre dizia: “que eu me lembre de Ti, que eu conheça a Ti, que eu ame a Ti…” (X). É nessa estrutura triádica que a busca da sabedoria se dá: a memória, que voltando-se a si mesma, se lembra e conhece quem é, e é pela vontade que este conhecimento e memória permanecem unidos em elo firme. É o mesmo processo ascensional que Boécio faz, a convite da Filosofia: relembrar quem ele é, para que conheça a beatitude para a qual foi feito, e amando, possa se unir ao Sumo Bem ao qual nada mais resta a desejar.

Ser sábio é, portanto, se lembrar de quem se é, e buscar não somente possuir a sabedoria, como se possui um objeto que se descarta, mas vive-la profundamente. É o mesmo desejo do personagem do famoso livro Lições de Abismo, de Gustavo Corção, que diz que

“o que eu exijo da verdade, para ser minha verdade, é a possibilidade de uma assimilação profunda, de uma união transformante que a faça realmente minha. Quero uma verdade que se transforme em meu sangue, em minha carne; e não uma verdade mecânica e ortopédica. “ (CORÇÃO, 2018, p. 222)


Ms 3045 fol.68v Lady Philosophy offers to Boethius the wings that will  enable his mind to fly aloft | PBS LearningMedia

II. Ser sábio é saber o que é digno de mover o coração humano.

Talvez A Consolação da Filosofia tenha feito sucesso não como um livro que apresenta um sábio ancião resignado com seus sofrimentos - como um Sócrates, por exemplo - mas justamente pela semelhança que o sofredor tem para conosco, e por seus lamentos, longe de serem fracos e sem motivos, tocam o coração por parecerem realmente justos. Assim como a Filosofia, no início, é recebida por Boécio com um ressentimento e indignação, quem é capaz de ler sem ao menos uma pontada de indignação ao ver que a Filosofia diz claramente que a situação do prisioneiro - entre torturas, condenado injustamente à morte e tendo perdido tudo - não é algo que lhe dê pena ou lhe faça sentir por ele compaixão?

Mas assim como o prisioneiro, também é dado ao leitor o privilégio de fazer o mesmo percurso de ascensão, de entrada em si mesmo para poder se elevar até as coisas que não passam e afastar-se das coisas que tem, sem merecimento, poder de perturbar o coração humano, por meio da Filosofia.

Esta, de forma impressionante, chega a dizer que, na verdade, a Fortuna, com suas variações infinitas e imprevisíveis foi benéfica para o prisioneiro. E por que seria? Não foi essa fortuna que o fez perder todos os seus bens, sua posição de influência no cenário político e o relegou a uma profunda humilhação da prisão e torturas? Como pode a Fortuna ser mestra?

Ela é mestra porque o ensinou - ou melhor, lhe recordou - o seu caráter instável e passageiro, e lhe deu a lição de não fiar-se nela. Se ele, que já sabia da instabilidade da Fortuna, ainda assim se confiou nos bens que ela fornecia, não deveria estar abalado quando todos estes bens fossem retirados, pois este é o modus operandi desta que é constantemente inconstante. Mas se, como é fato, ficou tão abalado por todos os sofrimentos que tem passado, é em razão do esquecimento, do fiar-se com firmeza no que não é firme, e de amar excessivamente os bens dados esquecendo da instabilidade de quem os dá. 

A Filosofia passa, então, a ir mostrando ao prisioneiro a instabilidade de todos estes bens, para lhe dar a sede de ascender ao Bem Imutável. E começa assim, a mostrar a vanidade da tríade já clássica dos bens que perturbam o coração humano por pensarem ser eles a felicidade: (a) a riqueza, (b) o poder e a (c) glória.

Poderíamos resumir todos os argumentos da filosofia em como uma constante de demonstração de que estes bens são limitados, que podem ser perdidos e que tem uma capacidade, uma extensão extremamente pequena em seu raio de poder, e nisto se encontra sua vanidade.

  1. A riqueza

Quanto a riqueza, entre os vários argumentos levantados, podemos tomar quatro como representativos, e que mostram que eles não são a felicidade do homem:

(i) Em primeiro lugar, enquanto a Felicidade verdadeira implica a posse do bem pelo ser humano, as riquezas são precisamente o contrário: elas só têm valor quando se perdem - isto é, elas só têm valor quando eu as perco, dou, em vistas à aquisição de certo bem. Ora, quão pobre é um bem que só tem valor na perda, e quão miserável é o homem avaro, que não quer perder o que na perda tem seu valor, e por isso possui algo menos valoroso do que possuiria se perdesse.

(ii) Em segundo lugar, não é um bem comum, e por isso, nem todos poderiam ser felizes, mas apenas alguns poucos que possuem este bem - e não seria demais perguntar: os que possuem são ricos possuindo ou mais ricos deixando de possuir?

(iii) Em terceiro lugar, as riquezas não são senão meios para aquisição de outras coisas, como ficou claro pelo que foi acima exposto, e como algo que possuo com razão de meios para outros fins pode ser a realização do homem, sua felicidade? As riquezas, por sua própria natureza, sempre apontam para outras coisas que, por determinado preço, podem ser adquiridas, e sem isso, elas não teriam valor algum. Assim, as riquezas são valorosas à medida em que as coisas a que ela se refere podem ser adquiridas, e é patente que a felicidade não é uma dessas coisas, de tal forma que nem sempre - ou quase nunca - os homens ricos são os que se podem dizer mais felizes.

(iv) a última - e paradoxal - razão é que a riqueza pode trazer muita infelicidade e perturbação ao homem, já que quanto mais rico, mais preocupações o homem tem em ordem a não perder suas riquezas: precisa de seguranças, de cuidado ao andar nas ruas, de uma rigorosa administração para que não tenha prejuízos...Enfim, das riquezas Boécio pode dizer:

“Estranha felicidade esta, proporcionada pelos bens terrestres: só se pode possuí-la ao custo da própria tranquilidade.” (II, 9) 

  1. O poder

Já o poder é também tão passageiro e limitado. A história da Roma Imperial é imagem perfeita disto: quantos reis que se consideravam deuses todo-poderosos e foram assassinados um atrás do outro, para que um outro assumisse imponente e poderoso até a hora de seu assassinato? O poder é muito frágil e passageiro, e além disso, talvez ele seja uma ilusão.

Uma ilusão porque o poder pode mover muitas coisas, mas é incapaz de mover um simples homem, se este for um homem livre. Uma vez que a liberdade é algo próprio da alma, nenhuma coação corporal pode diminuí-la, e assim, um homem escravizado, se tiver espírito livre, pode ser mais livre que seu senhor, que apesar de liberto, é escravo de tantos senhores quantos são o número de seus vícios. Importa mais, então, buscar ser livre que ser poderoso:

E que poder tem um homem sobre outro, excetuando-se o seu corpo e aquilo que é menos até que o corpo, isto é, seus bens? É possível dar ordens a um espírito livre? É possível abalar a resolução de um espírito firme e perturbar sua tranquilidade? Um tirano que pensasse poder fazer, por meio da tortura, um homem livre denunciar os pretensos cúmplices de uma rebelião contra ele veria o seguinte procedimento: o homem livre e honesto morderia a própria língua, parti-la-ia e a cuspiria no rosto do tirano. Assim, as torturas que o tirano considerasse instrumentos de crueldade e pavor tornar-se-iam para o sábio uma oportunidade de mostrar sua virtude." (Livro II.11)


  1. A glória

Por fim, a glória. Talvez um dos mais frágeis entre os bens, e que menos estão em nosso controle e que dependem exclusivamente de fatores externos para existir e permanecer, já que depende que outros nos louvem e honrem e que assim permaneçam. Mas o que pode haver de mais frágil que isso? Não é verdade que, comparado com a extensão do mundo e do universo, ainda que todos do mundo me glorificassem, isso nada seria em relação a esta imensidão? Além disso, que valor tem ser louvado pelos maus? E sendo bons ou maus os que nos louvam, não haverão um dia de morrer, e com eles, a glória que nos prestavam?

Com as riquezas, ainda que sejam tão frágeis e limitadas, é possível aproveitá-las como meio para adquirir outras coisas, e isto está sob nosso controle; com o poder, ainda que seja limitado e não possa coagir minimamente o homem livre, pode mover e está em seu poder a moção das coisas, dos bens, dos corpos. Já a glória, pelo contrário, depende total e exclusivamente de outros, de forma que não é possível sequer usa-la e tampouco é uma capacidade que melhora o glorificado - muitas vezes acontece o inverso  - e assim, podemos ver que ela é também “vaidade das vaidades” (Eclesiastico):

Todo aquele que persegue a todo custo/ 

Somente a glória e a estima mais que tudo, /

 Deveria observar a imensidão dos espaços celestes /

 E a relativa pequenez da Terra./

 Incapaz de vencer uma curta distância, /

 Seu nome glorificado lhe causará vexames./

  Por que, seres orgulhosos, essa insistência em remover/

 Em vão de vossos ombros o jugo da mortalidade?/

 Mesmo se uma fama atinge povos distantes,/

 Ali se espalha e se ouve falar dela, /

 Mesmo se uma família se honra com vários títulos,/

 A morte despreza como a tudo os píncaros da glória. /

 Ela acolhe do mesmo modo o humildade e o honroso/

 E aplana toda diferença./

 Onde estão hoje os ossos do leal Fabrício?/

 Que foi feito de Bruto? Ou do inflexível Catão?/

 Um eco de seu nome sobrevive e marca/

 Num punhado de escritos sua vã reputação. /

 Mas o conhecimento de nomes famosos/

 Faz-nos compreender pessoas que já desapareceram?/

 Vós estais portanto condenados a um total anonimato:/ 

Vossa efêmera fama não vos torna conhecidos./

 E, se pensais em prolongar a vossa vida/

 Pelo brilho de vossos nomes mortais, /

 Quando a reputação cair no esquecimento/

 Tereis morrido por uma segunda vez. (II. 14, p. 49)

Em outro belo trecho da obra, o autor sintetiza todos estes argumentos:

"[T]u queres te esforçar para ficar rico? Mas para isso terás de te tornar alguém pobre. Pretendes alcançar o brilho das honrarias? Mas para isso será necessário suplicar àqueles que as conferem, e tu, que pretendes eclipsar os outros, deverás humilhar-te com tuas súplicas. Ambicionas o poder? Lembra-te de que sempre correrás o risco de uma traição por parte de teus subordinados e estarás sujeito a muitos perigos. Procuras então a glória? O caminho é árduo, difícil e cheio de perigos. Desejas levar uma vida de prazeres? Ora, quem não desprezaria e rejeitaria o escravo de uma coisa tão banal e vulnerável como o teu corpo? Quanto aos que se destacam por suas qualidades físicas, considera como é tênue e frágil esse bem com o qual contam. Tendes acaso a menor esperança de ultrapassar o porte dos elefantes, a força dos touros ou a velocidade dos tigres? Observai a extensão do Céu, sua permanência e o ritmo de seus deslocamentos, e cessai por um momento de considerar o que não tem valor algum. O que torna o Céu admirável não são tanto suas propriedades quanto a Razão que os move. Já o esplendor da beleza, como desaparece rápido! Como é fugaz! As flores da primavera são menos efêmeras. E se, como diz Aristóteles, os seres humanos tivessem olhos de lince para ultrapassar a superfície das aparências, a vista das vísceras de Alcibíades não achariam eles seu corpo medonho, que no entanto era tão belo na superfície? (...) De tudo o que foi dito pode-se concluir como fato essencial que os atrativos incapazes de garantir os bens que prometem e que não reúnem em si a totalidade dos bens existentes não são caminhos que levam à felicidade, e portanto não são suficientes para levar o homem à verdadeira felicidade." (III.15, grifos nossos)

Assim, sabendo onde não deve procurar a felicidade, o prisioneiro e a Senhora Filosofia passam a investigação do que é ser feliz.

III. Ser sábio é saber onde se encontra o repouso do coração humano.

Todos os homens querem ser felizes, mas nem todos querem entrar investigar o que seja a felicidade, dizia Sêneca no início de seu De Beata Vita, e aqui se encontra o ponto de suma importância na obra. Não há sentido em perguntar os caminhos antes de saber onde se deseja chegar, e da mesma maneira, não se pode adequadamente responder a pergunta “como ser feliz?” se não se sabe o que é a felicidade.

Ao contrário dos bens passageiros, das riquezas, do poder e da fama, a verdadeira felicidade tem por características, segundo a Senhora Filosofia, a (i) desejabilidade universal - já que todos os homens buscam a felicidade, ainda que discordem no que ela consista - e a (ii) capacidade de fazer repousar o coração humano de todo e qualquer desejo - porque possuindo-a, nada mais lhe falta.

Se os bens considerados não podem ser a felicidade, uma vez que são imperfeitos, perecíveis, temporais, múltiplos e dissociados, o Sumo Bem só pode ser perfeito, imperecível, eterno, uno e ordenado. Quem pode ser este senão Deus? Ele é perfeito e nada lhe falta, é eterno, uno e ordena todo o cosmos em seu bem. 

Assim, todo aquele que busca o bem busca a este Sumo Bem, a Deus, ainda que não saiba. Cabe ao homem participar desta beatitude divina e ordenar todo seu ser em relação a ela, para que possa abandonar os bens imperfeitos e contemplar a perfeição divina, abandonar o que é perecível e fixar-se no que não passa, para no tempo fixar-se no que é atemporal e sair da desordem e do politeísmo de impulsos que o perturbam, para enfim alcançar a unidade em sua vida, a ordem interior que pressupõe um domínio sobre tudo o que é exterior em si.

Esta tese está profundamente ligada a doutrina dos transcendentais do ser, segundo a qual todo ser é - pelo simples fato de ser - bom, verdadeiro e uno, isto é, estas três notas são conversíveis entre si. Assim, a busca pela verdade é também beatífica, e a beatitude é uma vida segundo a razão na contemplação e fruição deste Bem Supremo, que faz com que o homem aos poucos vá abandonando a multiplicidade, a dissociação - psicológica, afetiva, intelectual e espiritual - até tornar todas essas dimensões cada vez mais unas, sinfônicas entre si. 

Em suma, todos os seres rejeitam a dissociação e são ordenados, cada um a seu modo, em vista a unidade e harmonia entre os que são diferentes. E ora, a tendência à unidade, que ocorre, cada um a seu modo, tanto nos homens quanto nos animais, é uma tendência - novamente, frise-se, cada um a seu modo e em sentido próprio - ao bem que todos os entes desejam.

Assim, o Sumo Bem confere unidade a toda a vida do homem e ordenação de todo seu ser em todas as dimensões, e sendo Perfeito e sem necessidade de nada, a participação do homem Nele é exatamente a fruição daquele bem que a Senhora Filosofia propunha no início: um bem que todos desejam e que ao possuir nada mais reste a desejar. 

 

Há, afinal, consolo na Filosofia?

Assim como a consolação que Boécio recebeu não foi talvez a que ele mais desejava de início, certamente foi a que ele mais precisava naquele momento. O homem do século XXI talvez se considere auto-suficiente demais e crê não poder aprender um homem como Boécio, já que este é um pobre homem preso que talvez nada tenha a dizer para os homens do “é proibido proibir”. 

Talvez o livro de Boécio não seja capaz de consolar o homem moderno e talvez este ainda seja incapaz de ansiar pela verdade, bondade e unidade que a felicidade traz. Talvez de fato, este não seja capaz adentrar na consolação que a Filosofia pode trazer.  Mas este é um problema que é menos de Boécio  do que do leitor que tem seu livro em mãos, que talvez esteja tão dissociado em infinitos bens finitos e gastando uma eternidade em bens tão perecíveis que esteja cego para o que seja o bem. 

Mas talvez o consolo do leitor moderno não seja tanto encontrar a felicidade de uma só vez, mas fazê-lo iniciar no processo de ascensão que leva a ela. Se ele não é capaz de ver a felicidade e nem de fruí-la, que este livro baste para mostrar o que não é a felicidade e com o que não vale a pena fazer perturbar o coração humano. Que aprenda a ser livre ao ver o prisioneiro consolado e possa começar a sair da prisão na qual a sua liberdade o tranca para que passe tranquilamente desolado.

Homem clássico, conhecedor de todas as histórias antigas dos gregos, Boécio como que nos exorta neste caminho ascensional ao qual ele nos conduz. Lembrando da famosa história de Orfeu e Eurídice, nos exorta neste caminho ascensional, a não olhar para trás, para as coisas baixas que antes nos mantinham no solo:

Essa história concerne a vós que, para a luz celeste,/

 Tentais conduzir a vossa alma./

Pois se deixamos os olhos voltarem-se para o Tártaro,/

Aquilo que trazemos de precioso/

Perde-se por estar sendo visto abaixo de nós." (III.24)

Por essa razão, ainda é preciso que aprendamos muito com Boécio: aprendamos o que é ser feliz e o que não é, aprender a dar o devido valor às coisas que passam, mas sem nunca esquecer que devemos fixar nosso coração nas que não passam, e aprender em um mundo em que tantas coisas exteriores nos puxam para fora, a ir para dentro de nós mesmos para relembrar quem somos e o que é nosso repouso, nosso bem, nossa felicidade. 

Se esse livro não é o fim desta caminhada, a nós basta que seja o início dela, na qual sabemos que não caminhamos sós.



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