Percebi o quão humano e quão divino é o principio da Doutrina Social da Igreja que afirma que é preciso se preocupar com as desolações corporais e materiais, e me recordei com carinho o porque os Papas - como Leão XIII, por exemplo -, tendo a grave obrigação de mostrar Deus aos homens, continuaram a ver na Questão trabalhista do século XIX uma missão essencial a ser cumprida. Em certa enciclica ou em outra obra católica acerca da Questão Social, se disse que a questão da fome e pobreza é missão da Igreja, porque como poderia o homem pensar em Deus se sua mente e seu estomago ardem de dor por não conseguirem pão para si e para seus filhos que choram em seus braços?!
Assim também a missão do intelectual neste momento, tem de ser ligada a uma atitude profundamente sensível aos que sofrem nos leitos, os que sofrem nas casas, e os que sofrem na alma, sabendo que não é para um refletir egoista que foi chamado...E como pensar nesse papel me veio a mente nesses tempos.
Olhemos o exemplo da Virgem Maria, acerca da qual um adágio medieval - talvez de São Bernardo - dizia que "de Maria nunquam satis", nunca se falou o suficiente, e ela, entre as criaturas, é exemplo de todas as virtudes que podemos imaginar, por sua obediência e amor fiel a Deus, e por isso, também nessa circunstancia a Virgem nos ajuda a meditar nisto. Seu exemplo certamente teria algo a me dizer sobre o modo de consolação que o intelectual pode dar neste momento, e uma motivação a manter e intensificar a contemplação das verdades conhecidas.
Tive a felicidade de encontrar na semana passada uma autora extremamente inteligente, que fiquei triste de não ter encontrado antes: a Sister Prudence Allen R.S.M, que tem como obra central a Trilogia The Concept of Woman - com suas 600 paginas no volume 1 e 3, e mais de 1000 no volume 2 - na qual busca desvendar históricamente, filosoficamente e teologicamente este conceito e seu desvelar. Em uma pesquisa de seus artigos e livros encontrei um artigo escrito em um congresso do Instituto Jacques Maritain sobre a Vocação do Intelectual, cujo nome é "Mary and The Vocation of Philosophers", no qual, partindo do convite de São João Paulo II em sua Fides et Ratio (108), considera a profunda harmonia existente entre a vocação da Virgem Maria e a vocação da verdadeira filosofia. Exponho aqui algumas imagens que podem ajudar a meditar sobre o tema:
Em primeiro lugar, ela recorda uma imagem famosa da Virgem na poética Bizantina, na obra de Pseudo-Epifânio, que diz que ela é "a mesa (thrapeza) intelectual da Fé que fornece o Pão da Vida para o mundo", como uma imagem da filosofia que tem de ser mesa firme, pura, bem fundada para que possa o Verbo, a Teologia vir a se deitar. Só em uma boa filosofia pode se fazer teologia, e por isso, é preciso diligencia na atividade filosófica, e descobrir nisso sua maior dignidade.
Além disso, a autora separa alguns aspectos da vocação de Maria que podem fazer refletir o intelectual católico:
- 1º A Anunciação: um dos mistérios que meditamos ao rezar o Rosário. Aqui a Virgem revela seu dom do intelecto, e revela também uma profunda humildade perante um mistério que ultrapassa os planos humanos. Pela questão "como isso se dará?" confia plenamente que Deus, que tudo pode, providenciou os meios para que Sua Vontade se cumpra, não duvidando e nem querendo manipular a realidade, mas recebendo e aceitando ("Eis aqui a serva do Senhor...")
- 2º A Visitação recorda-nos que toda verdade recebida, encontrada, todo dom que nos é dado de graça e por graça é para ser compartilhado. Há uma dimensão comunitária da vocação do filósofo e da própria contemplação, que até é manifesto também na poesia de Dante, quando põe na boca de Virgilio que, quanto aos bens espirituais, "quantos mais 'nosso' se disser/mais cada uma vai possuir de bem,/ por caridade a mais no claustro arder." (Purgatório, XV, 55-57, Ed. 34). Assim a Virgem corre ao encontro de Santa Isabel, para partilhar com ela o dom que recebeu, cantar as maravilhas que o Senhor fez nela e auxiliar sua prima, trazendo pra ela tamanha alegria que até S. João Batista pula de alegria no ventre, por receber o Senhor e Sua Mãe.
- 3º No Nascimento de Jesus em Belém, temos um sinal de receptividade da Fé (representada pelos Pastores) e da Razão (Reis Magos). Ambos oferecem sua homenagem ao Salvador, com seus presentes de amor, e assim também ambos devem reverenciar o Verbo, a Fé - reta, ortodoxa, verdadeiramente católica e de acordo com a Revelação, Dogmas e Magistério da Igreja - e a Razão - bem fundada, firme, buscando compreender e adentrar no Mistério já crido.
- 4º As Bodas de Cana nos permitem associar a Virgem da imagem já referida do Pseudo-Epifanio, de Maria como mesa intelectual. Aqui, ela é como que a mesa do banquete, provendo as coisas. Revela o protótipo do ethos feminino, de uma "atitude espiritual constante em direção aos outros"(cf. Allen), no serviço a Deus e ao próximo. A atitude do católico - e sob o prisma que estamos meditando aqui, do intelectual - é buscar fomentar esse espirito de serviço, de saber que o dom que se recebe é para ser difundido e compartilhado, que esse dom alimenta e dá alegria aos homens de boa vontade, e que é se nos foi dado, será cobrado se for enterrado. A.D. Sertillanges, no seu famoso livro A Vida Intelectual (É Realizações) diz que“
[o] verdadeiro cristão manterá permanentemente diante dos olhos a imagem desse globo onde a cruz esta fincada, onde os humanos necessitados erram e sofrem, e onde o sangue redentor, em filetes numerosos, procura vir a seu encontro. A porção de claridade que ele [o intelectual] detém o reveste de um sacerdócio; o que ele quer alcançar com isso é uma promessa implícita de dom. [...]Toda verdade é prática; a mais abstrata em aparencia, a mais elevada, é tambem a mais prática, Toda verdade é vida, orientação, caminho em vista do fim humano. Eis porque Jesus Cristo disse como uma afirmação unica: Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida.”
Allen também medita o significado profundo de algumas aparições marianas. Na aparição de La Sallete, a Virgem mostra a conciliação entre Beatitude e sofrimento, ela, que ve Deus face a face e tem Nele sua Beatitude, é capaz de chorar pelos pecados do mundo que ofendem a Jesus. Em Guadalupe e em Lourdes, nos fala de forma eloquente a partir das imagens da gravidez e da concepção: o dogma da Imaculada Conceição, proclamado na Bula Ineffabilis Deus por Pio IX tem um de seus motores na aparição de Lourdes, e isso é certamente um grande motor para que os filósofos católicos se ponham contra a Cultura da Morte tão denunciada por S. João Paulo II na Evangelium Vitae.
Assim redescobri com vigor renovado que toda verdade, por menor que seja, é orientação para a vida e que toda verdade com "v" minusculo leva - consciente ou inconscientemente - à Verdade com "V" maiusculo, e por essa razão, Santa Edith Stein dizia que quem busca a verdade busca a Deus ainda que não saiba...
Sei de uma coisa: neste momento, é preciso que os pulmões tenham ar, é preciso que se difunda pelos pulmões bom ar natural, é preciso que cuidem de seus corpos, é preciso que tenham o repouso propício, é preciso que tenham o alimento corporal...Mas sabeis, vós que estudais, que o tempo agora é de preparar a mesa. Sim, vós, que fizestes disto vossa missão, que vêem quanto lixo tem se oferecido para alimentar as inteligencias, sabeis bem que quando os pulmões estiverem saudáveis, quando o corpo estiver descansado, quando os estômagos estiverem saudáveis, todos estes que procuraram heroicamente fazer os pulmões ficarem sãos terão fome e haverão de perguntar: "E agora? O que faremos com eles? O que haveremos de fazer com nossos pulmões sadios? (...) Temos fome, quem nos dará alimento?", e tereis de mostrar que nessas verdades simples e cotidianas o ser humano encontra uma antegozo de uma Verdade que quer encontra-lo, e, neste momento, nada podeis fazer senão apontar o dedo e dizer: "Eia! Vede! para que eles ouçam e suspirem com os pulmões, repousem o coração inquieto, e alimentem-se desse que diz: "Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida" e "Eu Sou o Pão da Vida".
E quando eles tiverem essa fome, ai tereis de estar, ai é onde Deus espera que estejas, ai é que encontras com teus irmãos e lhes dá socorro, lhes visita, partilha as verdades que encontraste e amaste, ensina - com tua vida, sobretudo - a baixar a cerviz docilmente à Fé e fazer da razão amiga e serva desta, ensina a olhar amorosamente para os que não tem vinho, e servir...Nestes bens hás de multiplicar os tesouros que recebeste, tesouro que - lembra-te sempre - não são teus.
RECOMENDAÇÃO
“Mary and the Vocation of Philosophers,” in John P. Hittinger, ed, The Vocation of the Catholic Philosopher: From Maritain to John Paul II (Washington DC: American Maritain Association- Distributed by the Catholic University of America Press, 2011): 51-76.