segunda-feira, 6 de abril de 2020

Semanário Intelectual (2) - Olhando para a Virgem Maria e redescobrindo o papel do intelectual católico em tempos de crise.

Duas semanas em que estava devendo escrever, para fazer desvelar os fios emaranhados acumulados em minha mente. E que propicia foi essa semana...Nesses tempos de pandemia, o que fazem os homens das letras? O que fazem aqueles que fizeram da busca sedenta da verdade sua vida, e da difusão desta sua missão? Ora, em uma pandemia muitos tem morrido não de sede, mas sem ar, sem respirar, e estes parecem querer - de forma plenamente justificada - mais a difusão de mais ar nos pulmões do que sinapses cerebrais. Para qualquer um que, com coração cristão, queira "ser tudo para todos", sofrendo com os que sofrem e se alegrando com os que se alegram, suas ocupações cotidianas podem parecer cada vez menos potentes e menos capazes de saciar os outros; o que uma aula bem feita dá a respirar àquele que precisa desesperadamente? O que uma palestra sobre a verdade pode dar aqueles que tem sede permanecer vivo?

Percebi o quão humano e quão divino é o principio da Doutrina Social da Igreja que afirma que é preciso se preocupar com as desolações corporais e materiais, e me recordei com carinho o porque os Papas - como Leão XIII, por exemplo -, tendo a grave obrigação de mostrar Deus aos homens, continuaram a ver na Questão trabalhista do século XIX uma missão essencial a ser cumprida. Em certa enciclica ou em outra obra católica acerca da Questão Social, se disse que a questão da fome e pobreza é missão da Igreja, porque como poderia o homem pensar em Deus se sua mente e seu estomago ardem de dor por não conseguirem pão para si e para seus filhos que choram em seus braços?!

Assim também a missão do intelectual neste momento, tem de ser ligada a uma atitude profundamente sensível aos que sofrem nos leitos, os que sofrem nas casas, e os que sofrem na alma, sabendo que não é para um refletir egoista que foi chamado...E como pensar nesse papel me veio a mente nesses tempos.

Olhemos o exemplo da Virgem Maria, acerca da qual um adágio medieval - talvez de São Bernardo - dizia que "de Maria nunquam satis", nunca se falou o suficiente, e ela, entre as criaturas, é exemplo de todas as virtudes que podemos imaginar, por sua obediência e amor fiel a Deus, e por isso, também nessa circunstancia a Virgem nos ajuda a meditar nisto. Seu exemplo certamente teria algo a me dizer sobre o modo de consolação que o intelectual pode dar neste momento, e uma motivação a manter e intensificar a contemplação das verdades conhecidas.

Tive a felicidade de encontrar na semana passada uma autora extremamente inteligente, que fiquei triste de não ter encontrado antes: a Sister Prudence Allen R.S.M, que tem como obra central a Trilogia The Concept of Woman - com suas 600 paginas no volume 1 e 3, e mais de 1000 no volume 2 - na qual busca desvendar históricamente, filosoficamente e teologicamente este conceito e seu desvelar. Em uma pesquisa de seus artigos e livros encontrei um artigo escrito em um congresso do Instituto Jacques Maritain sobre a Vocação do Intelectual, cujo nome é "Mary and The Vocation of Philosophers", no qual, partindo do convite de São João Paulo II em sua Fides et Ratio (108), considera a profunda harmonia existente entre a vocação da Virgem Maria e a vocação da verdadeira filosofia. Exponho aqui algumas imagens que podem ajudar a meditar sobre o tema:

Em primeiro lugar, ela recorda uma imagem famosa da Virgem na poética Bizantina, na obra de Pseudo-Epifânio, que diz que ela é "a mesa (thrapeza) intelectual da Fé que fornece o Pão da Vida para o mundo", como uma imagem da filosofia que tem de ser mesa firme, pura, bem fundada para que possa o Verbo, a Teologia vir a se deitar. Só em uma boa filosofia pode se fazer teologia, e por isso, é preciso diligencia na atividade filosófica, e descobrir nisso sua maior dignidade.

Além disso, a autora separa alguns aspectos da vocação de Maria que podem fazer refletir o intelectual católico:

  • 1º A Anunciação: um dos mistérios que meditamos ao rezar o Rosário. Aqui a Virgem revela seu dom do intelecto, e revela também uma profunda humildade perante um mistério que ultrapassa os planos humanos. Pela questão "como isso se dará?" confia plenamente que Deus, que tudo pode, providenciou os meios para que Sua Vontade se cumpra, não duvidando e nem querendo manipular a realidade, mas recebendo e aceitando ("Eis aqui a serva do Senhor...")
A Anunciação de Nossa Senhora - Arautos do Evangelho
  • 2º A Visitação recorda-nos que toda verdade recebida, encontrada, todo dom que nos é dado de graça e por graça é para ser compartilhado. Há uma dimensão comunitária da vocação do filósofo e da própria contemplação, que até é manifesto também na poesia de Dante, quando põe na boca de Virgilio que, quanto aos bens espirituais, "quantos mais 'nosso' se disser/mais cada uma vai possuir de bem,/ por caridade a mais no claustro arder." (Purgatório, XV, 55-57, Ed. 34). Assim a Virgem corre ao encontro de Santa Isabel, para partilhar com ela o dom que recebeu, cantar as maravilhas que o Senhor fez nela e auxiliar sua prima, trazendo pra ela tamanha alegria que até S. João Batista pula de alegria no ventre, por receber o Senhor e Sua Mãe.
A visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel | Encontro ...
  • 3º No Nascimento de Jesus em Belém, temos um sinal de receptividade da Fé (representada pelos Pastores) e da Razão (Reis Magos). Ambos oferecem sua homenagem ao Salvador, com seus presentes de amor, e assim também ambos devem reverenciar o Verbo, a Fé - reta, ortodoxa, verdadeiramente católica e de acordo com a Revelação, Dogmas e Magistério da Igreja - e a Razão - bem fundada, firme, buscando compreender e adentrar no Mistério já crido.
ícone maria grávida advento - Pesquisa Google | O cristianismo ...
  • 4º As Bodas de Cana nos permitem associar a Virgem da imagem já referida do Pseudo-Epifanio, de Maria como mesa intelectual. Aqui, ela é como que a mesa do banquete, provendo as coisas. Revela o protótipo do ethos feminino, de uma "atitude espiritual constante em direção aos outros"(cf. Allen), no serviço a Deus e ao próximo. A atitude do católico - e sob o prisma que estamos meditando aqui, do intelectual - é buscar fomentar esse espirito de serviço, de saber que o dom que se recebe é para ser difundido e compartilhado, que esse dom alimenta e dá alegria aos homens de boa vontade, e que é se nos foi dado, será cobrado se for enterrado. A.D. Sertillanges, no seu famoso livro A Vida Intelectual (É Realizações) diz que“ 
[o] verdadeiro cristão manterá permanentemente diante dos olhos a imagem desse globo onde a cruz esta fincada, onde os humanos necessitados erram e sofrem, e onde o sangue redentor, em filetes numerosos, procura vir a seu encontro. A porção de claridade que ele [o intelectual] detém o reveste de um sacerdócio; o que ele quer alcançar com isso é uma promessa implícita de dom. [...]Toda verdade é prática; a mais abstrata em aparencia, a mais elevada, é tambem a mais prática, Toda verdade é vida, orientação, caminho em vista do fim humano. Eis porque Jesus Cristo disse como uma afirmação unica: Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida.” 
Como escrever uma história coerente utilizando a jornada do herói ...
Allen também medita o significado profundo de algumas aparições marianas. Na aparição de La Sallete, a Virgem mostra a conciliação entre Beatitude e sofrimento, ela, que ve Deus face a face e tem Nele sua Beatitude, é capaz de chorar pelos pecados do mundo que ofendem a Jesus. Em Guadalupe e em Lourdes, nos fala de forma eloquente a partir das imagens da gravidez e da concepção: o dogma da Imaculada Conceição, proclamado na Bula Ineffabilis Deus por Pio IX tem um de seus motores na aparição de Lourdes, e isso é certamente um grande motor para que os filósofos católicos se ponham contra a Cultura da Morte tão denunciada por S. João Paulo II na Evangelium Vitae.

Assim redescobri com vigor renovado que toda verdade, por menor que seja, é orientação para a vida e que toda verdade com "v" minusculo leva - consciente ou inconscientemente - à Verdade com "V" maiusculo, e por essa razão, Santa Edith Stein dizia que quem busca a verdade busca a Deus ainda que não saiba...

Sei de uma coisa: neste momento, é preciso que os pulmões tenham ar, é preciso que se difunda pelos pulmões bom ar natural, é preciso que cuidem de seus corpos, é preciso que tenham o repouso propício, é preciso que tenham o alimento corporal...Mas sabeis, vós que estudais, que o tempo agora é de preparar a mesa. Sim, vós, que fizestes disto vossa missão, que vêem quanto lixo tem se oferecido para alimentar as inteligencias, sabeis bem que quando os pulmões estiverem saudáveis, quando o corpo estiver descansado, quando os estômagos estiverem saudáveis, todos estes que procuraram heroicamente fazer os pulmões ficarem sãos terão fome e haverão de perguntar: "E agora? O que faremos com eles? O que haveremos de fazer com nossos pulmões sadios? (...) Temos fome, quem nos dará alimento?", e tereis de mostrar que nessas verdades simples e cotidianas o ser humano encontra uma antegozo de uma Verdade que quer encontra-lo, e, neste momento, nada podeis fazer senão apontar o dedo e dizer: "Eia! Vede! para que eles ouçam e suspirem com os pulmões, repousem o coração inquieto, e alimentem-se desse que diz: "Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida" e "Eu Sou o Pão da Vida".

E quando eles tiverem essa fome, ai tereis de estar, ai é onde Deus espera que estejas, ai é que encontras com teus irmãos e lhes dá socorro, lhes visita, partilha as verdades que encontraste e amaste, ensina - com tua vida, sobretudo - a baixar a cerviz docilmente à Fé e fazer da razão amiga e serva desta, ensina a olhar amorosamente para os que não tem vinho, e servir...Nestes bens hás de multiplicar os tesouros que recebeste, tesouro que - lembra-te sempre - não são teus. 


RECOMENDAÇÃO
 “Mary and the Vocation of Philosophers,” in John P. Hittinger, ed, The Vocation of the Catholic Philosopher: From Maritain to John Paul II (Washington DC: American Maritain Association- Distributed by the Catholic University of America Press, 2011): 51-76.

Narrativas da Educação na Idade Média: as contribuições de Stephen Jaeger para a compreensão do Humanismo Medieval.


Hoje em dia, todos sabemos da contribuição da Igreja na origem e progresso das Universidades, tal como conhecemos hoje. Com muito acerto se apresenta o século XIII como o ápice da Baixa Idade Média, porque é precisamente neste século que temos constituidas as maiores realizações deste século das luzes: as Universidades, que receberam as maiores inteligencias do tempo, gerando intelectuais como Santo Tomás de Aquino - e sua magnifica Suma Teológica - e São Boaventura; na arquitetura, este é o século em que se ergueram as maiores Catedrais, nas quais o povo medieval acorria em massa para as celebrações liturgicas; este também é o século que gera intelectualmente a Dante Alighieri, e nos quais há uma renovação impressionante nos estudos filosóficos - a redescoberta de Aristóteles havia se dado não há pouco tempo - e juridicos - com a transição do método de glosas para o método de Comentários ao Codex Iuris Civilis.

Mas como foi gestado este século? Geralmente, três narrativas se constroem acerca deste periodo:

(i) A primeira é a narrativa - simplista, imprecisa e falsa em seus traços gerais - de que a Idade Media foi um periodo de mil anos (cujo inicio se dá em 476, na Queda do Império do Ocidente), no qual nada houve de intelectualmente digno de nota. Um periodo no qual a Igreja Católica é uma espécie de vilã que luta para manter o povo na ignorância com um notável anti-intelectualismo (como a narrativa do filme O Nome da Rosa e de filmes de ficção altamente influentes no imaginário popular, como o Código da Vinci). Neste sentido, não há propriamente uma história da educação, senão uma história - mal feita - da cultura, sob as lentes de um materialismo histórico dialético, no qual todas as estruturas culturais são nada mais que formas de dominação social com roupagens religiosas.

(ii) A segunda narrativa - mais precisa históricamente, e consistente em traços gerais - distingue a Idade Média em dois grandes periodos principais: (a) A Alta Idade Média e a (b) Baixa Idade Média. A primeira teria por inicio 476, Queda do Império do Ocidente, até 1054 ou 1075, indicando a data do Cisma Grego - quando a Igreja de Constantinopla entra em cisma com a autoridade Papal - ou a publicação do Dictatus Papae, pelo Papa Gregório VII - no qual se reafirma e aprofunda as consequencias juridico-canonicas da autoridade do Papa sobre a administração da Igreja. A Baixa Idade Média teria por inicio a Reforma Gregoriana, ja citada, na qual se clarifiica e formula de maneira canonica a autoridade pontificia, e tem fim ou no século XV (Queda de Constatinopla) ou XVI (Revolução Protestante de Lutero, em 1517).

Quanto a essa narrativa, a Alta Idade Média pode em alguns matizes ser considerada um periodo de Trevas (alguns historiadores afirmam indistintamente as Trevas em todo esse periodo, o que nos parece incorreto, como será explicado mais a frente; outros qualificam o adjetivo de "Trevas" a periodos especificos, como o século VI e VII, no qual a produção intelectual e as manifestações culturais são como que bárbaras, e o século X, século de Invasões dos Nórdicos e crises na Igreja -simonia, nicolaismo, escandalos na catedra pontificia. É possivel conceder quanto ao século VI e VII, e conceder de maneira qualificada quanto ao século X, por entendermos que essas crises são de natureza politica e administrativa, não implicando trevas culturais necessariamente.

A Baixa Idade Média seria então o periodo das Luzes, nas quais as instituições desenvolveram-se em suas formas maduras, gerando as universidades, as produções intelectuais e culturais mais desenvolvidas (a Suma de Aquino, a Comédia de Dante, as Universidades e a Catedral), e na qual podemos considerar o periodo àpice da Cultura Ocidental. Esse retrato é fiel às mais recentes pesquisas historiográficas, mas tem algumas dificuldades, de - como todo o quadro geral - ter dificuldades de considerar as grandes crises sociais da época e a diversidade da(s) idade (s) media (s), como a peculiaridade da Itália, as revoltas sociais (como a Pataria italiana) e religiosas (o problema cátaro/ albigense e valdense). Ainda assim, é um quadro consistente acerca da Baixa Idade Média, ainda que não se possa dizer o mesmo quanto à Alta Idade Média.

(iii)Uma terceira narrativa, que concordando em linhas gerais com a segunda (sobretudo com relação à Baixa Idade Média), explicita mais minuciosamente os aspectos distintivos da Alta Idade Média, é dada por Stephen Jaeger ( ) em seu grande livro A Inveja dos Anjos. Ali se busca responder as principais questões a respeito da transição da Alta para a Baixa Idade Média e acerca das caracteristicas próprias da Alta Idade Média, e criticando alguns pressupostos historiográficos comuns entre medievalistas que os fazem muitas vezes cair em engano com relação às formas culturais e intelectuais da Alta Idade Média, julgando-os por critérios intelectualistas e próprios de culturas literárias/textuais. Passaremos a expor essa terceira narrativa mais extensamente, buscando mostrar as contribuições da obra de Jaeger, que está para o estudo do humanismo medieval como a Paideia de Werner Jaeger está para a história da educação dos gregos.

Relembremos, em linhas gerais, as linhas do tempo de cada narrativa
(1) (...) --> Idade Média (476-1453) --> (...).
(2) (...)--> Alta Idade Média --> Baixa Idade Media --> (...)
(3) (...) --> Alta Idade Média (Periodo Crítico [V-VIII], Renascimento Carlingio [IX-X], Periodo Otoniano [X-XI, transição entre Alta e Baixa Idade Média] --> Baixa Idade Média (Escolas Independentes e Reformas Monasticas - Cluny e São Vitor, por exemplo [XI e XII], Universidades e Escolástica [XII e ápice no XIII], Crise [XIV, laicização, Estados Nacionais, crise com Felipe o Belo] --> (...).

Como podemos considerar então a Alta Idade Média? Tomando como marco convencional a Queda do Império Romano do Ocidente (476), temos uma situação completamente nova socialmente e culturalmente: o Império Romano se muda para o Oriente, para Constantinopla, e o Ocidente fica à merce dos Francos, Godos, Hunos e outros povos, chamados "Bárbaros" - o que equivale a dizer "não-romano". Nesta situação de crise, grande parte das instituições romanas mais desenvolvidas foram definhando, e grande parte da inteligencia romana acabou por migrar para a nova Cidade Imperial. Não tendo quem guiasse as cidades muitas vezes, os homens mais bem educados do Ocidente eram os homens da Igreja, e sobretudo os bispos - que muitos historiadores consideram os protagonistas da Alta Idade Média quanto à resistencia ao furacão barbaro - e monges - que nos mosteiros preservaram os grandes monumentos intelectuais e literários da destruição e saqueamentos (nem sempre com sucesso: vários mosteiros foram incendiados no processo), e estes foram os que tomaram as redeas da sociedade nesse periodo de dois a tres séculos de invasões bárbaras - lembramos a imagem de São Leão Magno indo enfrentar Átila, Rei dos Hunos, e São Gregório Magno, também Papa, a cuidar dos abastecimentos da Cidade de Roma nos periodos em que estava sitiada.   

Heróis medievais: O leão que afastou o “flagelo de Deus” das ...

Dessa influencia direta sobre a sociedade, e comando até em assuntos administrativos - uma vez que não haviam homens competentes para tal na época - se deu até a união com os Francos (sobretudo com Pepino), e a partir deste momento, esse comando foi se dando de forma indireta - mas não por isso menos intensa. 

A difusão dos Mosteiros, sobretudo pela movimento Beneditino, a partir da aliança com os Francos se prepara para tornar o centro de toda educação medieval e também centro a partir do qual surgirão as futuras cidades medievais - arquitetonicamente, é possivel ver que as cidades medievais surgiram sempre ao redor de um mosteiro. Pode-se dizer que a vida era regulada por aqueles sinos, pelo momento do Oficio Divino, pelo calendário litúrgico e trabalho rural.

Consideremos o primeiro grande evento para compreender o Humanismo Medieval Monástico, cujo ápice é no século XII, é a Coroação de Carlos Magno e as Reformas Carolingias sob Alcuino. Este sábio monge que muito auxiliou o Imperador, sistematizou e colocou as artes liberais (Trivium e Quadrivium) como grade curricular nas escolas monásticas. Neste periodo, o modo de estudar as artes liberais tinha algumas notas peculiares, por sua inserção na cultura monástica, como por exemplo, a predominancia de uma abordagens carregada pelo estudo dos mores como disciplina (cf. Stephen Jaeger). 

Isso quer dizer que, a lógica, a Gramatica e a Retórica não eram estudadas como disciplinas autônomas e para fins intelectuais apenas - como se estuda hoje, muitas vezes - mas sim como meio para aperfeiçoamento moral. É interessante notar que o estudo do Quadrivium, na disciplina da Astronomia, não se buscava aprender as leis dos movimentos do cosmo sobretudo, mas sim desvendar o que ele nos diz simbólicamente, por seus números e ciclos, que possuem chaves alegóricas para serem desvendadas: o numero 3 descoberto no movimento das estrelas poderia facilmente significar a triade das faculdades da alma, inteligencia, memória e vontade, ou alguma vestigio da Trindade Santissima que nos leve a elevar nossa alma à consideração das coisas divinas, por exemplo. 

Aqui também se distingue muito propriamente o fim da educação: é sobretudo formar homens letrados que possam servir como Bispos - cujo raio de influencia, na era Carolingia, ultrapassava muito à um administrador de Dioceses - e clerigos educadores. Esses homens haviam de ser educados em toda sorte de costumes sociais respeitaveis e finos, como o modo de andar, de falar, de ensinar e outros.

Com o fim da Dinastia Carolingia e inicio da Dinastia dos Otões, a base institucional da educação passa a ser sobretudo as Catedrais e a Corte. E aqui, o papel administrativo dos Bispos e Clerigos em geral se torna muito maior, e pode-se até mesmo dizer que a educação, ao transladar-se para as Catedrais e Cortes, se torna um "quintal" para o serviço administrativo. Já aqui vemos que apesar de mantidos os mores como essenciais às disciplinas, subjacentes a todas elas, vê-se que os mores são cada vez menos aqueles próprios a um monge, e mais próprios a um funcionário da corte; temos aqui, sobretudo, os civiles mores, próprios da conduta administrativa, sendo um bom bispo identificado não necessariamente com o santo, mas com o parcimonioso administrador.

O terceiro grande momento da educação europeia medieval é o surgimento das Escolas Independentes de Paris do século XII, que virá a gerar as Universidades no século XIII. Aqui temos a raiz da escolástica e da cultura textualizada, com um método sistematizador. E é a partir desse momento que se considera o ápice da Baixa Idade Média, o que pode-se até conceder, mas contanto que não se afirme a narrativa de que antes do século XIII nada havia de cultura que pudesse chamar-se com esse nome. Por simplificações como essa que Jaeger (p.372) é cético para termos generalizantes como “cultura moral cristã medieval” que se encontra no século XIII, pois essa generalização pressupõe um critério logico enganoso: o da riqueza textual de um Abelardo, Santo Tomás, etc. Essa cultura não é a mesma em todos os periodos da Idade Média. 

O que distingue esse humanismo cuja origem temos no século IX  e seu declinio no século XII e prepara o século XIII?

Em primeiro lugar, a transferencia da corte real/imperial para as escolas catedrais e novo vigor dos mosteiros. Quando, ao fim da Dinastia dos Otões, o movimento monastico ganha novo vigor, sobretudo com as Reformas de Cluny, e põe sobre sólidas bases esse modelo de educação, que Jaeger chama de "carismática", porque é baseada sobretudo não sob textos e auctorictates intelectuais, mas sim no carisma pessoal do professor que ensina. A educação consiste então, em uma mimesis do carater luminoso do professor, de seus mores exemplares e virtude provada, e o aluno é tão melhor quanto mais se assemelha a este. Alguns textos da época nos remetem a analogias próprias desse periodo, como a marca do carimbo feita na cera e a do barro moldado pelo oleiro: assim é o mestre, que marca no aluno com as virtudes próprias que deve conquistar, assim o oleiro que molda o aluno segundo a imagem de virtudes morais. Essa imagem do professor é sugestiva, mas também é se considerarmos a posição do aluno: passiva e receptiva, pois o carimbo das virtudes só pode bem reluzir na cera se ela esta mole, passivel a ser marcada; também o barro tem de estar dócil à mão do oleiro, e assim também o aluno nas mãos do professor.

Depois, o fato de que a educação das disciplinas do Trivium e Quadrivium são vistas sob o aspecto ético delas. Assim, diferentemente do século XIII, que privilegia o aspecto Lógico e Dialético do Trivium, no Humanismo do século X,XI e XII tem como disciplina central a retórica, considerada uma disciplina verdadeiramente política-administrativa - no periodo Otoniano - e a disciplina própria do mestre monge - que pelo seu belo discurso, imprime nas almas a virtude. Esse aspecto é central para distinguir os periodos. A chave para entender essa cultura das escolas do século XI e XII, o humanismo que surge ali, está nas palavras litterae et mores. Era uma educação em duas frentes, intelectual e ética, na qual se primava pela segunda, e tendo como obra pronta o homem bem educado, que é como que barro modelado nas mãos do seu professor, que tem de possuir autoridade pessoal, carismática, mais que autoridade intelectual e textual. Essa formação dos mores exteriores se devia sobretudo por um principio pedagógico pressuposto: o que diz haver uma identidade entre interior e exterior, sendo o segundo manifestação do primeiro e o primeiro educado pelo segundo, com uma polaridade entre ambos, sendo que a educação dava conta dos dois aspectos, levando muitas vezes a duas direções: à da sobriedade e moderação e a do luxo e opulência.

Assim, é justificado que Sthepen Jaeger inicie seu livro com uma bela citação de São Bernardo, em sua carta a uma virgem de nome Sofia. Ele diz:
“Ó, com que arte a disciplina modela cada postura do seu corpo de menina e, mais ainda, da sua mente! Ajusta a angulação do pescoço, dá o jeito às sombrancelhas, compõe a expressão do rosto, direciona os olhos, modera a risada, controla a ira, arruma o semblante. [...] Que gloria se pode comparar à virgindade assim adornada? A gloria dos anjos? Um anjo tem virgindade, porém não corpo; ele é mais feliz por isso, certamente, porém não mais forte. O melhor e mais desejável ornamento é aquele que até os anjos poderiam invejar.” ( Carta à virgem Sofia)
Com essa citação ele antecipa todo seu argumento do livro, e também é representativo para nos mostrar a diferença entre o século XIII e o Humanismo que o precedeu: Se a obra do Século XIII é a Suma Teológica, podemos dizer, de certa forma, que a obra do segundo é a virgem Sofia, o homem e a mulher bem formados nos mores e litterae, formados como barro nas mãos do mestre ou como a vela de suave cera que deixa que o sinete bem a marque (cf. Hugo de São Vitor), como modelo de virtude. O produto do século XI não são livros, mas o homem bem formado; havia indistinção entre intelectual e moral, e o corpo e a presença física eram os meios principais de educar. Se nos séculos seguintes se leem livros, no século XI, se lê o corpo disciplinado – e até mesmo a palavra documentum significava o exemplo vivo de um homem. 
A Idade Média, os monges e o progresso | Cléofas

Nesse humanismo ainda não tinham-se em mãos as obras de Aristóteles, e por isso, os filosofos pagãos por excelencia eram Cícero e Socrates, considerados os principais modelos intelectuais de uma cultura educacional que primava pela presença do professor, pois todos sabem que Sócrates também nunca escreveu nada - e pelo seu discipulo, Platão, sabemos que não era entusiasta da filosofia escrita - , e sua sabedoria estava em sua presença pessoal, em sua filosofia viva. 

No século XII, vamos chegando a decadência desse modelo de educação e o surgimento do modelo escolástico e universitário, cujo embate de modelos se manifesta paradigmaticamente no conflito entre São Bernardo (cultura monástica, carismática) x Pedro Abelardo (cultura universitária, lógica e textual). O modelo monástico tentou sobreviver ainda no século XII, mas ja era decadente,e pode-se dizer que o renascimento do século XII consiste no esforço de materializar e preservar em obras o carisma do século XI que se esvazia. No século XII, o carisma se torna fabuloso,  simbólico, perdendo assim sua realidade. Se no século XI podemos dizer que é a cultura de Sócrates, a do século XII é a de Platão, que tenta, por escrito, preservar a presença viva, física e carismática do mestre.

Enfim, não se deve pensar nesse período como árido, por não se encontrar obras escritas da magnitude de um Santo Tomás ou São Boaventura, mas sim observar os mestres em sua presença carismática, pois esse é o critério com o qual devemos julgar a grandeza intelectual desse priodo, e usar outro critério que não este seria anacronismo: julgar o século XI e até fins do sec. XII em sua educação carismática sob as lentes intelectualistas e escolásticas das sumas do século XIII.

Mais estudos desse periodo serão apresentados aqui, em outros posts.

A Fama irrecuperável: As consequências da calúnia.

                                 Extemplo Libyae magnas it Fama per urbes, /                                   Fama, malum qua non aliud vel...