domingo, 7 de julho de 2019

As Emoções e a Vida Moral, segundo Rudolf Allers.

No meio termo está a virtude. E quando se investiga o tema das emoções, duas perspectivas se mostram dominantes: a perspectiva emotivista (ou sentimentalista) e a perspectiva contrária a toda e qualquer espécie de emoções, como se as emoções fossem instrumentos de perturbação da razão, de tal maneira que pode-se nomear esta segunda perspectiva de neo estóica/apática, que rejeita toda e qualquer manifestação emotiva como anti-racional.

Qual seria a atitude adequada perante as emoções? A resposta que será dada aqui foge aos dois extremos, mas não seria talvez um meio termo entre apatia e emotivismo. Principalmente porque aqui não se busca analisar as emoções e a razão de forma estanque, como que em compartimentos separados, mas sim as emoções em seu aspecto cognitivo, ou seja, as emoções enquanto são precedidas por aspectos intelectuais, o que nos faz partir do pressuposto de que as emoções não são absolutamente irracionais, tampouco são apenas um aspecto da potencia intelectiva.

Na I Pars de sua Summa Theologiae, S. Tomás de Aquino dedica um Tratado sobre o Homem, no qual analisa a estrutura entitativa do ser humano, suas potencias e operações.

Parte da distinção entre seres vivos e não vivos, sendo os primeiros auto-moventes (por um principio intrinseco) e os segundos são levados ao movimento apenas por meio de outros (principio de movimento extrinseco). Este principio de movimento instrinseco é chamado nos seres vivos de alma (psique, do grego). No ser humano, este principio de movimento intrinseco, de organização da matéria e de operação, é a alma intelectiva, e Santo Tomás distingue nela três potências gerais: (i) vegetativa, (ii) sensitiva e (iii) intelectiva, sendo que as duas primeiras potencias estão virtualmente contidas na alma racional, não havendo no ser humano uma pluralidade de almas, mas apenas uma com os poderes das outras contidos nesta (virtualmente, virtus, do latim, poderes, forças).

Quanto ao tema dos aspectos cognitivos das emoções, é grande a contribuição que o psicologo Rudolf Allers trouxe ao tema em seu artigo "The Cognitive Aspect of Emotions" (The Thomist, 1942). Inspirado no esquema antropológico sistematizado por S. Tomás, busca investigar a natureza das emoções e a importancia dos sentidos humanos e da inteligencia nelas, avançando nas potencias particulares, que para Aquino se distinguem em (i) prévias ao intelecto, (ii) intelectivas e (iii) apetitivas, sendo que para a nossa análise - que segue de perto à Allers - importa que foquemos nas potencias prévias ao intelecto.
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Rudolf Allers (1883-1963)

Essas potencias prévias ao intelecto são aquelas vegetativas ou sensitivas, sendo que as primeiras são as que tem por função a geração, crescimento e nutrição, e as segundas podendo ser divididas em (i) potencias internas e (ii) potencias externas. As potencias externas são já bem conhecidas: são os cinco sentidos externos, como o tato, visão, paladar, etc; já nas internas, temos o senso-comum, que unifica os dados experienciados pelos cinco sentidos externos, a memória, a imaginação e, por fim - e o que nos interessa aqui - a potencia cogitativa. Deixemos posto apenas, por hora, que a potencia cogitativa é aquela que descobre intenções nos dados externos que apreende por meio de comparação (q. 78, a.4), ou podemos também formular conforme Allers o faz, dizendo que "Aquinas speaks of the cogitative power (vis cogitativa) as an instinct, namely, as that by which the appetite is urged to activity. (...) it is more correct to say that the  data apprehended by this internal sense have this urging power" (ALLERS, 1942, p. 625). Os dados excitam a potencia cogitativa, cujo objeto é a bondade ou valor que manifestados no particular apreendido, e assim, a cogitativa parece se distinguir das outras potencias internas, que não tem necessariamente sua operação ligada à razão (ALLERS, 1942, p. 625)

A tese formulada no artigo de Allers é de que há um paralelismo entre as capacidades cognitivas e as capacidades emocionais, entre a consciência dos valores e os estados emocionais, e que a manifestação de uma emoção não determina necessariamente a imaturidade intelectual de uma pessoa. Seguimos o autor ao definir emoções como " a mental state of peculiar character by which an individual responds to the awareness of a pleasant or unpleasant situation, or any other aspect of a situation entailing goodness or badness. This response is of the whole individual, mental and bodily, not of the mind or of consciousness alone" (ALLERS, 1942, p. 590), sendo assim a correlação mais clara, mostrando assim que o emocionar-se pressupõe que se apreenda o aspecto de bondade e valor do objeto que causou a emoção, e para apreender este aspecto, temos esta potencia cogitativa, que no ser humano faz essa ligação entre o sensível e o intelectual.

Na abordagem Tomista, podemos relacionar o conceito de emoções paralelo ao conceito de paixões da alma. Se é verdade que as paixões convém mais à parte sensitiva - enquanto recebe os dados da realidade exterior e assim sofre uma modificação corporal -, podemos considera-las apenas dessa maneira, distinguindo analiticamente e focando em seu aspecto sensitivo apenas, ou podemos considera-la enquanto pertence também à parte apetitiva do ser humano, que, segundo S. Tomás implica atração para aquilo que é próprio do agente (Q. 22, a.2, respondeo). Esse apetite sensitivo pode ser distinguido entre irascível e concupiscível, que se distinguem por sua referencia à objetos diferentes (e segundo S. Tomás, o objeto diversifica a espécie, e são portanto de espécies diferentes), sendo o da primeira "o bem ou o mal que tiverem razão de árduos ou dificeis" e o do segundo "o bem e o mal sensivel, deleitável e o doloroso"(Q.23, a.1, resp).

A importancia do estudo das emoções - ou paixões, considerando seu aspecto cognitivo - se apresenta na tese do ja mencionado psicólogo Rudolf Allers, de que "o homem, na emoção, toma consciência de seu 'status ôntico'" (ALLERS, 1942, p. 634), ou seja, sua reações emocionais, por guardarem um paralelo com sua condição cognitiva, revelam sua condição entitativa e moral. Para entender melhor de que forma isto acontece, partiremos da sistematização de S. Tomás de Aquino sobre as paixões

Ao distinguir as paixões do concupiscivel e as do iráscivel, forma um esquema contendo 6 paixões do primeiro e 5 do segundo, mas para a análise presente, importa mais que sejam analisadas as paixões concupisciveis, que são: (i) o amor e (ii) o ódio, (iii) o desejo/concupiscencia e a (iv) fuga/aversão, o (v) prazer/alegria e a (vi) dor/tristreza. Tomaremos como caso exemplar o amor.

amor, sendo a primeira paixão na ordem das concupisciveis, é "o principio de movimento que tende para o fim amado"(q.26, a.1, resp), e pode ser considerado em vários sentidos, seja como apetite natural das coisas (forma imprópria), apetite sensitivo e apetite racional no ser humano, e neste ensaio, importa que tratemos da paixão do amor apenas enquanto ela uma mudança corporal causada por um objeto exterior (e por isso uma paixão) e tende para um o fim amado que é antes apreendido pela potencia cogitativa e percebido como um bem. Santo Tomás diz que três são as causas do amor(q. 27): (i) o bem e o (ii) conhecimento e a (iii) semelhança, e que se o amor apetece ao bem, só pode apetecer a ele enquanto este é conhecido, e só pode ser conhecido se de alguma forma for apetecível, e portanto, há uma relação mútua entre as duas causas, entre este aspecto afetivo (afecção, afectio) e cognoscitivo, de tal maneira que o o movimento amoroso à coisa ou à pessoa amada revela um bem percebido e conhecido, que pode ser tanto de uma visão corporal (que é principio do amor sensitivo) quanto da contemplação espiritual (que é principio do amor espiritual).

E que o que amamos pode revelar muito o que somos, sendo a semelhança também causa do amor - terceira causa -, podendo revelar tanto o que nos falta e que temos anseio por possuir (amor de concupiscência) ou aquilo que o amado possui assim como nós também possuímos, e cuja semelhança me faz ama-lo e querer seu bem por causa de si mesmo, e não enquanto posso possui-lo ou enquanto me traz beneficio (amor de amizade ou de benevolência). Dessa forma, o que amamos revela muito do que somos, das nossas inclinações; se amamos coisas baixas, isso pode dizer muitas coisas acerca de nosso status moral. De fato, Camões foi feliz quando em um de seus sonetos descreve que "Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar." O que esta sempre em nossa mente? O que desperta nosso amor ou ódio? Onde está nosso coração e nosso tesouro?

Quanto mais temos conhecimento da realidade amada, mais profundamente consideramos e conhecemos seu aspecto de bem, e pelo amor deste bem, queremos adentrar mais profundamente no conhecimento, em um "circulo virtuoso" faz com que tenhamos uma reação afetiva mais intensa e adequada em relação à retidão e profundidade da apreensão intelectual. Dessa forma, a vida afetiva e o ato moral do ser humano seria - conforme a formulação de Dietrich von Hildebrand - uma resposta adequada a um ou mais valores que nos "urgem"; na educação infantil, por exemplo, muitas vezes se busca impedir que a criança se expresse emocionalmente, uma vez que ela sempre o faz de forma escandalosa e desordenada, mas ora, a solução para isto não é eliminar as emoções, mas sim fazer com que ela, conhecendo as coisas que merecem atenção e reações mais ou menos intensas, possa reagir de forma adequada a elas. É preciso que seja ensinado à criança à hierarquia dos valores para que ela responda a cada um deles de forma adequada e justificada, sabendo que se são várias coisas que merecem entusiasmo, elas não são idênticas e algumas merecem um entusiasmo mais intenso que outras (Allers, 1944, nota 44).

Sintetizando, as emoções, (i) revelam o status ôntico do ser humano e (ii) revelam que há um paralelo entre capacidade cognitiva do ser humano e capacidades afetivas, sendo que quanto mais desenvolvido intelectualmente, mais adequadamente pode fruir das emoções e reagir adequadamente à realidade, se afastando de uma atitude apática e de uma atitude sentimentalista, pois suas emoções estão subordinadas à razão. Assim,
A mere cultivation of emotionalilty, as an end in itself, will cause more harm than good in the advance toward the perfect life. Emotion too, whatever its importante, its spontaneity, its impressiveness, must be subjected to the control of the rational faculties. It is not emotion itself which decides on its rightness or wrongness. Such judgment is passed by reason only. Here, as everywhere it is right reason to which the ultimate judgment belongs, and it is good will to which belongs execution." (ALLERS, 1944, p.648)  


A Fama irrecuperável: As consequências da calúnia.

                                 Extemplo Libyae magnas it Fama per urbes, /                                   Fama, malum qua non aliud vel...