sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Jusnaturalismo: imagens, espantalhos e formulações - Um resumo do segundo capítulo do livro Lei Natural e Direitos Naturais, de John Finnis.

Todo estudante de Direito, ao iniciar seus estudos acerca do positivismo juridico, toma em mãos algumas obras do famoso jurista alemão Hans Kelsen, que se mostra uma figura exemplar da dicotomia entre positivismo jurídico x jusnaturalismo. Mesmo considerando que este debate ja é superado e que as fronteiras entre o jusnaturalismo contemporâneo e o positivismo jurídico estão cada vez mais apagadas, pelos desenvolvimentos teóricos de H.L.A. Hart, Joseph Raz, John Finnis, Will Walluchow, Matthew Krammer, Kennet Himma, ainda é muito comum os estudantes de Direito menos acostumados com esses debates considerarem qualquer forma de jusnaturalismo como algo ultrapassado.

Em nossos tempos, o jusnaturalismo retorna com grande vigor na obra de John Finnis (1940- ), professor emérito de Oxford, que em seu livro Lei Natural e Direitos Naturais busca compreender a Tradição da Lei Natural em confronto com a filosofia jurídica e politica que se desenvolveu a contra as teses jusnaturalistas. Neste seu livro, no Capitulo II, o autor busca expor as imagens geralmente difundidas por alguns autores de linha convencionalmente chamada de positivista a respeito do Direito Natural, mostrando as origens destas, e perguntando por fim:estas imagens são fiéis para com a Tradição da Lei Natural?

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As primeira crítica que se faz ao jusnaturalismo é quanto a pretensa confusão que este faz entre a ordem do Direito e a ordem da Moralidade. O Direito - na visão pretensamente jusnaturalista - seria reduzido a uma análise da moralidade de suas normas, com a aceitação ou rejeição posterior à analise. E os positivistas, por sua vez, saberiam distinguir que é diferente falar sobre validade jurídica e de validade moral. Alguns diriam que a validade jurídica e validade moral estão em níveis discursivos absolutamente diferentes, e outros positivistas até poderiam assumir que elas tem uma conexão, mas ainda assim, essa conexão não seria necessária (como Hart explica no Capítulo VIII do Conceito de Direito). Assim, qualquer filosofia do Direito Jusnaturalista se reduziria à proposição: "Lex Injusta non Est Lex", pronunciada por Santo Agostinho e repetida por Santo Tomás em seu Tratado da Lei. Por essa razão, Joseph Raz, positivista exclusivo, diz que
``...De acordo com as teorias do direito natural, não existe qualquer noção     especifica de validade jurídica. O único conceito de validade é validade de acordo com o direito natural, isto é, validade moral...´´ (RAZ, citado por FINNIS, p.38)
O segundo aspecto dessa crítica continua dizendo que a Tradição da Lei Natural defende que o Direito positivo ou é uma cópia do Direito Natural, ou não existe. E que portanto, cabe-lhes mostrar qual é esse direito natural, e se ele existe, como explicar certas leis que não encontram paralelo no direito natural? E mais, pode-se ainda dizer que se há um direito natural não escrito do qual todas as leis positivas emanam, copiam ou devem imitar, não deveria haver uma certa concordância entre os homens quanto ao seu conteúdo? Ora, se esses princípios são tão naturais no homem e tão evidentes, porque há divergências substanciais entre as diversas concepções morais que deveriam guiar a sociedade?

               Mas a crítica mais famosa e popular feita à esta teoria é a pretensa falha lógica que comete ao derivar ilicitamente proposições deontológicas e proposições fáticas, isto é, extrair um "dever" de uma proposição de fato, de um "ser". Mas parece que não é possível fazer qualquer dedução de dever da mera descrição de um objetivo; e assim, não é possível qualquer tipo de Direito Natural inferido da natureza humana. Essa crítica é historicamente atribuída a David Hume, que diz que
             ``Em todo sistema de moralidade que encontrei até agora, sempre percebi que o autor procede, por algum tempo, do modo costumeiro de raciocinar e estabelece a existência de um Deus, ou faz observações a respeito dos assuntos humanos; quando de repente fico surpreso ao descobrir que, em ver  das cópulas usuais entre as proposições, é e não é, não encontro qualquer proposição que não esteja conectada com um deveria ou não deveria.(...) [É necessário] que uma razão seja dada para o que parece ser totalmente inconcebível, qual seja , como essa nova relação pode ser uma dedução a partir de outras que são totalmente diferentes dela...´´  (HUME, citado por FINNIS, p.47-48)
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Estas são, sinteticamente, as principais objeções ao jusnaturalismo elencadas por Finnis em seu livro.

Após essa exposição, Finnis busca responder a cada uma das objeções. Dessa forma, podemos dividir a resposta em (i) explicações acerca da relação entre validade jurídica e moral na Tradição Jusnaturalista, (ii) se as divergências morais entre os homens nos permite concluir pela inexistência de valores morais objetivos, (iii) resposta ao problema da derivação ilícita do ser para o dever.

Em primeiro lugar, Finnis busca mostrar que dentro da tradição jusnaturalista, apesar de sua abordagem primariamente moral, é capaz de compreender um sentido de validade jurídica também, mas apenas diz que esta validade jurídica é compreendida melhor quando esta norma juridicamente válida é moralmente aceitável. O Direito e suas normas, tendo por fim dirigir as ações do homem, e sendo o homem um animal racional, suas ações serão moralmente relevantes, e por isso, Finnis distingue entre caso central e casos periféricos das normas jurídicas. Ele explica


"...a validade jurídica (no sentido focal, moral de validade jurídica) do direito positivo é derivada de sua conexão racional com o direito natural (isto é, derivada dele), e essa conexão é válida, normalmente, se, e somente se, (i) o direito surge de um modo que é juridicamente válido (no sentido especialmente restrito, puramente jurídico de validade jurídica) e (ii) o direito não é materialmente injusto nem em seu conteúdo, nem nas circunstancias relevantes em que é postulado.´´ (FINNIS,p.39)
Sobre a imagem que diz que o jusnaturalismo transforma o direito positivo em uma mera cópia do Direito Natural descoberto, Finnis responde citando o próprio S.Tomás de Aquino, que segundo a tradição jusnaturalista, se pode distinguir duas maneiras de compreender a derivação do Direito Positivo a partir da Lei Natural: (i) por conclusão - por exemplo, de "a ninguém deve-se fazer o mal" para a conclusão "não matar" - e (ii) por determinação - por exemplo, um arquiteto tem de construir uma casa, mas possui uma certa liberdade criativa para escolher quantos quartos ela terá, quais suas medidas, etc (I-IIae, Q.95 a.2, resp). É dessa segunda maneira que pode-se entender também de que forma essa derivação não tolhe a liberdade criativa e adaptativa do legislador, mas somente a fornece critérios para que o conteúdo dessas leis não se torne tirânico. (FINNIS,p.39-40)

E quanto ao argumento de que o jusnaturalismo é idealista demais quanto aos objetivos dos homens, Finnis reafirma que nenhum teórico jusnaturalista sequer defendeu que todos os homens eram concordes em todas as questões morais substanciais, e mais: que isso não somente não atinge em nada a pretensão de um direito natural, mas sim fortalece essa pretensão como possibilidade de solução para essas discordâncias. Esses princípios do Direito Natural são de fato evidentes, mas essa evidencia pode ser obscurecida por alguns obstáculos que se apresentam à razão de alguns homens. Por isso, podemos dizer que 
"...mesmo as implicações morais mais elementares e mais facilmente reconhecíveis desses primeiros princípios são capazes de ser obscuras ou de estar distorcidas para pessoas especificas e, de fato, para culturas inteiras, por causa de preconceito, equivoco, costumes, influencia do desejo por gratificações especificas, etc.(...) e existem muitas questões morais que só podem ser respondidas corretamente por alguém que seja sábio e que as tome profundamente em consideração.´´ (FINNIS,p.41-42).
E Finnis diz mais: ainda que não fossem observados esses princípios, eles ainda seriam válidos enquanto princípios. Isso ficará mais claro quando se compreender a auto evidencia dos bens básicos como razões para a ação de qualquer pessoa em qualquer tempo, ainda que sejam muitas vezes mal empregados .(FINNIS,p.36)

Quanto ao último - e mais popular - argumento contra o jusnaturalismo, que se baseia na imagem de que as abordagens jusnaturalistas iniciam-se com especulações sobre a natureza humana e daí deduzem conclusões morais, deve-se responder a ele explicando a diferença entre os a estrutura dos primeiros princípios da razão teórica e os da razão prática. Essa compreensão sobre os bens a serem perseguidos parte não de uma perspectiva externa - de um observador que vê a natureza humana de um "tubo de ensaio" - mas sim de uma perspectiva interna do agente que experimenta certos bens e os compreende como oportunidades de realização, como uma possibilidade de instanciar um aspecto desta realização humana. 
Tomas considera que o raciocínio prático começa não por entender essa natureza pelo lado de fora, (...) mas por experienciar a nossa própria natureza, por assim dizer, pelo lado de dentro, sob a forma de nossas próprias inclinações.(...) A pessoa não julga que tem a inclinação a descobrir a respeito das coisas e depois infere que o conhecimento é um bem a ser buscado. Pelo contrário, por meio de um simples ato de entendimento não-inferencial, a pessoa apreende que o objeto da inclinação que ela experiência é um caso particular de uma forma geral de bem, para si mesmo (e outros como ela).´´(FINNIS,p.44-45).
Parece, portanto, que a crítica de Hume ao jusnaturalismo só é valida no caso de Jusnaturalismos de raiz moderna, como o da Escola de Direito Natural do séc. XVIII, que a partir de descrições da natureza dos homens e animais em geral, deduziam a nível de frequência de tais atos uma lei natural. E desses postulados descritivos acerca da natureza humana, se poderia deduzir a mos geometricus todas as conclusões possíveis do Direito. É esta a característica central desse jusnaturalismo racionalista. E dessa forma, a crítica de Hume não atinge a Tradição Clássica do Jusnaturalismo de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.

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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Filosofia Brasileira: Mário Ferreira dos Santos e uma breve introdução à sua Filosofia Concreta.

Mário Ferreira dos Santos (1907-1968) é um dos grandes filósofos brasileiros do século passado cuja obra abrange mais de 45 volumes de sua Enciclopédia de Ciencias Filosoficas e Sociais e somados à uma obra original na história do pensamento filosófico brasileiro.
Uma de suas principais contribuições para a filosofia, que será o objeto deste trabalho, é a formulação de um sistema filosófico original, que ele chamou de Filosofia Concreta, cujo nome deriva do latim cum e crescior, crescer com, crescer junto. Este nome se justifica pelo caráter positivo desta filosofia, que se mostra aberta a crescer com as positividades de todos os sistemas filosóficos capazes de contribuir para um verdadeiro saber, isto é, temos aqui um sistema que cresce junto com as positividades e com as pequenas verdades que cada filosofia alcançou e coloca-los dentro de uma magistral síntese
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E perceba-se aqui que o que Mário esta tentando fazer não é um ecletismo monstruoso no qual filosofias diversas são mescladas entre si sem critério e com proposições contraditórias (de fato, Mario toma contribuições desde Pitágoras, Platão, Aristóteles, São Boaventura, Santo Tomás de Aquino, Suarez, Husserl, etc), mas sim uma verdadeira síntese que parte de um método bem preciso e particular — a dialética ontológica — , que passará a ser explicado.

O principal problema a ser resolvido pela filosofia concreta é o da descrença quanto ao caráter apodítico da filosofia, que passou a ser considerada como um conjunto de opiniões diversas cuja certeza é impossível, sendo assim o método cientifico o único critério de verificabilidade e certeza. Ora, a Filosofia Concreta, portanto é “uma matematização da filosofia (no sentido mais elevado de matemática, que não se cinge apenas ao campo quantitativo), fundada em juízos apodíticos, universalmente válidos , que decorrem,segundo o nosso método dialético, de fundamentos ontológicos.” (SANTOS, 2009, p. 47). Ela busca um fundamento seguro para o filosofar, um fundamento do qual não se possa duvidar e seja capaz de fundar uma certeza apodítica; este fundamento permite com que filosofemos com um rigor matemático, quase a mos geométricus.

Feita essa introdução à Filosofia Concreta, iniciemos suas teses principais, fundadas sobre o Ponto Arquimédico, e o método da obra.

A tese com a qual o autor inicia a obra, o seu ponto Arquimédico, é a proposição “algo há”. Desta primeira tese, desenvolve-se toda a argumentação do livro. O método de provar seus postulados se dá tanto pela via racional imediata quanto mediata (demonstração), a demonstração por sua vez pode ser direta ou indireta, se for direta, pode ser indutiva ou dedutiva, e assim por diante; se for indireta, Mário se utiliza principalmente do argumento ad absurdum, para mostrar a impossibilidade de provar falsas suas teses sem cair em absurdos. A não aceitação de uma tese posterior implicaria a negação de uma tese anterior já demonstrada, e em última análise, do Ponto Arquimédico, e portanto, toda a tentativa de atacar as teses posteriores cairia no absurdo de ter que negar a tese evidentíssima de que algo há.

Atente-se que esta tese 1: “Algo há”, para Mário, pode ser o ponto seguro para o inicio do filosofar, por duas razões: (i) ela não é demonstrável, é mostrável, e (ii) nega-la seria cair no absurdo.
Quanto à tese 1, Mário explica que vários postulados surgidos a partir dela aparecem por intuição apofântica, na qual 
“…[n]ão há propriamente dedução, nem indução, há revelação, desnudamento, desvelamento. A necessidade ontológica ressalta, exibe-se e ela mesma inaugura a descoberto pelo espirito do homem. E o rigor ontológico, é o logos do ontos examinado, que esplende, que ilumina o que estava oculto (apô-phaos). Nosso trabalho é, então, apenas intuitivo- apofântico, e a racionalização processa-se a posteriori.” (SANTOS, 2009, p. 99)
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Em síntese, poderíamos considerar a argumentação desse fundamento da Filosofia Concreta nas seguintes proposições: Algo há. O Nada Absoluto não há, pois se houvesse, algo seria. Este Nada Absoluto, não pode preceder o Ser porque se precedesse o Ser viria do Nada, seria gerado pelo Nada, e a capacidade de gerar é uma positividade - o que já impossibilita o Nada Absoluto. Então, o Ser sempre houve, e o Nada absoluto nunca houve. O Ser, tendo sempre existido, não depende de outro para ser gerado, e portanto é Absoluto (ab solutum). Dessa forma, conclui-se que:

  • Algo há. E sua existência prova a impossibilidade do Nada Absoluto em qualquer momento.

  • O Nada Absoluto (a ausência de qualquer positividade) não há, pois se houvesse,se tivesse positividade, seria algo. Mais: o Nada Absoluto não pode ter existido nunca, pois se o Nada Absoluto (nihilum) alguma vez existiu, o Ser nunca poderia existir ou vir a ser - pois o Nada Absoluto não pode gerar qualquer ser, pois se pudesse, teria positividade e seria algo - , e portanto, se nunca houve o Nada Absoluto, sempre houve algo, ser: não pode haver rupturas no ser.
  • Se o Nada Absoluto não é possivel, não precedeu o Ser; logo, o Ser é Absoluto (ab solutum) e sempre existiu. E se sempre existiu, é eterno, e também condição para a efetivação dos seres que nem sempre existiram.
  • Tem de ter havido um Ser (necessidade) para a possibilidade de ser a outros entes (contingência). Este Ser Necessário é Deus, fundamento de todos os seres que se efetivam.

A Fama irrecuperável: As consequências da calúnia.

                                 Extemplo Libyae magnas it Fama per urbes, /                                   Fama, malum qua non aliud vel...