Todo estudante de Direito, ao iniciar seus estudos acerca do positivismo juridico, toma em mãos algumas obras do famoso jurista alemão Hans Kelsen, que se mostra uma figura exemplar da dicotomia entre positivismo jurídico x jusnaturalismo. Mesmo considerando que este debate ja é superado e que as fronteiras entre o jusnaturalismo contemporâneo e o positivismo jurídico estão cada vez mais apagadas, pelos desenvolvimentos teóricos de H.L.A. Hart, Joseph Raz, John Finnis, Will Walluchow, Matthew Krammer, Kennet Himma, ainda é muito comum os estudantes de Direito menos acostumados com esses debates considerarem qualquer forma de jusnaturalismo como algo ultrapassado.
Em nossos tempos, o jusnaturalismo retorna com grande vigor na obra de John Finnis (1940- ), professor emérito de Oxford, que em seu livro Lei Natural e Direitos Naturais busca compreender a Tradição da Lei Natural em confronto com a filosofia jurídica e politica que se desenvolveu a contra as teses jusnaturalistas. Neste seu livro, no Capitulo II, o autor busca expor as
imagens geralmente difundidas por alguns autores de linha convencionalmente chamada de positivista a
respeito do Direito Natural, mostrando as origens destas, e perguntando por fim:estas imagens são fiéis para com a Tradição da Lei Natural?
As primeira crítica que se faz ao jusnaturalismo é quanto a pretensa confusão que este faz entre a ordem do Direito e a ordem da Moralidade. O Direito - na visão pretensamente jusnaturalista - seria reduzido a uma análise da moralidade de suas normas, com a aceitação ou rejeição posterior à analise. E os positivistas, por sua vez, saberiam distinguir que é diferente falar sobre validade jurídica e de validade moral. Alguns diriam que a validade jurídica e validade moral estão em níveis discursivos absolutamente diferentes, e outros positivistas até poderiam assumir que elas tem uma conexão, mas ainda assim, essa conexão não seria necessária (como Hart explica no Capítulo VIII do Conceito de Direito). Assim, qualquer filosofia do Direito Jusnaturalista se reduziria à proposição: "Lex Injusta non Est Lex", pronunciada por Santo Agostinho e repetida por Santo Tomás em seu Tratado da Lei. Por essa razão, Joseph Raz, positivista exclusivo, diz que
``...De acordo com as teorias do direito natural, não existe qualquer noção especifica de validade jurídica. O único conceito de validade é validade de acordo com o direito natural, isto é, validade moral...´´ (RAZ, citado por FINNIS, p.38)
O segundo aspecto dessa crítica continua dizendo que a Tradição da Lei Natural defende que o Direito positivo ou é uma cópia do Direito Natural, ou não existe. E que portanto, cabe-lhes mostrar qual é esse direito natural, e se ele existe, como explicar certas leis que não encontram paralelo no direito natural? E mais, pode-se ainda dizer que se há um direito natural não escrito do qual todas as leis positivas emanam, copiam ou devem imitar, não deveria haver uma certa concordância entre os homens quanto ao seu conteúdo? Ora, se esses princípios são tão naturais no homem e tão evidentes, porque há divergências substanciais entre as diversas concepções morais que deveriam guiar a sociedade?
Mas a crítica mais famosa e popular feita à esta teoria é a pretensa falha lógica que comete ao derivar ilicitamente proposições deontológicas e proposições fáticas, isto é, extrair um "dever" de uma proposição de fato, de um "ser". Mas parece que não é possível fazer qualquer dedução de dever da mera descrição de um objetivo; e assim, não é possível qualquer tipo de Direito Natural inferido da natureza humana. Essa crítica é historicamente atribuída a David Hume, que diz que
``Em todo sistema de moralidade que encontrei até agora, sempre percebi que o autor procede, por algum tempo, do modo costumeiro de raciocinar e estabelece a existência de um Deus, ou faz observações a respeito dos assuntos humanos; quando de repente fico surpreso ao descobrir que, em ver das cópulas usuais entre as proposições, é e não é, não encontro qualquer proposição que não esteja conectada com um deveria ou não deveria.(...) [É necessário] que uma razão seja dada para o que parece ser totalmente inconcebível, qual seja , como essa nova relação pode ser uma dedução a partir de outras que são totalmente diferentes dela...´´ (HUME, citado por FINNIS, p.47-48)
Estas são, sinteticamente, as principais objeções ao jusnaturalismo elencadas por Finnis em seu livro.
Após essa exposição, Finnis busca responder a cada uma das objeções. Dessa forma, podemos dividir a resposta em (i) explicações acerca da relação entre validade jurídica e moral na Tradição Jusnaturalista, (ii) se as divergências morais entre os homens nos permite concluir pela inexistência de valores morais objetivos, (iii) resposta ao problema da derivação ilícita do ser para o dever.
Em primeiro lugar, Finnis busca mostrar que dentro da tradição jusnaturalista, apesar de sua abordagem primariamente moral, é capaz de compreender um sentido de validade jurídica também, mas apenas diz que esta validade jurídica é compreendida melhor quando esta norma juridicamente válida é moralmente aceitável. O Direito e suas normas, tendo por fim dirigir as ações do homem, e sendo o homem um animal racional, suas ações serão moralmente relevantes, e por isso, Finnis distingue entre caso central e casos periféricos das normas jurídicas. Ele explica
"...a validade jurídica (no sentido focal, moral de validade jurídica) do direito positivo é derivada de sua conexão racional com o direito natural (isto é, derivada dele), e essa conexão é válida, normalmente, se, e somente se, (i) o direito surge de um modo que é juridicamente válido (no sentido especialmente restrito, puramente jurídico de validade jurídica) e (ii) o direito não é materialmente injusto nem em seu conteúdo, nem nas circunstancias relevantes em que é postulado.´´ (FINNIS,p.39)
Sobre a imagem que diz que o jusnaturalismo transforma o direito positivo em uma mera cópia do Direito Natural descoberto, Finnis responde citando o próprio S.Tomás de Aquino, que segundo a tradição jusnaturalista, se pode distinguir duas maneiras de compreender a derivação do Direito Positivo a partir da Lei Natural: (i) por conclusão - por exemplo, de "a ninguém deve-se fazer o mal" para a conclusão "não matar" - e (ii) por determinação - por exemplo, um arquiteto tem de construir uma casa, mas possui uma certa liberdade criativa para escolher quantos quartos ela terá, quais suas medidas, etc (I-IIae, Q.95 a.2, resp). É dessa segunda maneira que pode-se entender também de que forma essa derivação não tolhe a liberdade criativa e adaptativa do legislador, mas somente a fornece critérios para que o conteúdo dessas leis não se torne tirânico. (FINNIS,p.39-40)
E quanto ao argumento de que o jusnaturalismo é idealista demais quanto aos objetivos dos homens, Finnis reafirma que nenhum teórico jusnaturalista sequer defendeu que todos os homens eram concordes em todas as questões morais substanciais, e mais: que isso não somente não atinge em nada a pretensão de um direito natural, mas sim fortalece essa pretensão como possibilidade de solução para essas discordâncias. Esses princípios do Direito Natural são de fato evidentes, mas essa evidencia pode ser obscurecida por alguns obstáculos que se apresentam à razão de alguns homens. Por isso, podemos dizer que
"...mesmo as implicações morais mais elementares e mais facilmente reconhecíveis desses primeiros princípios são capazes de ser obscuras ou de estar distorcidas para pessoas especificas e, de fato, para culturas inteiras, por causa de preconceito, equivoco, costumes, influencia do desejo por gratificações especificas, etc.(...) e existem muitas questões morais que só podem ser respondidas corretamente por alguém que seja sábio e que as tome profundamente em consideração.´´ (FINNIS,p.41-42).
E Finnis diz mais: ainda que não fossem observados esses princípios, eles ainda seriam válidos enquanto princípios. Isso ficará mais claro quando se compreender a auto evidencia dos bens básicos como razões para a ação de qualquer pessoa em qualquer tempo, ainda que sejam muitas vezes mal empregados .(FINNIS,p.36)
Quanto ao último - e mais popular - argumento contra o jusnaturalismo, que se baseia na imagem de que as abordagens jusnaturalistas iniciam-se com especulações sobre a natureza humana e daí deduzem conclusões morais, deve-se responder a ele explicando a diferença entre os a estrutura dos primeiros princípios da razão teórica e os da razão prática. Essa compreensão sobre os bens a serem perseguidos parte não de uma perspectiva externa - de um observador que vê a natureza humana de um "tubo de ensaio" - mas sim de uma perspectiva interna do agente que experimenta certos bens e os compreende como oportunidades de realização, como uma possibilidade de instanciar um aspecto desta realização humana.
Tomas considera que o raciocínio prático começa não por entender essa natureza pelo lado de fora, (...) mas por experienciar a nossa própria natureza, por assim dizer, pelo lado de dentro, sob a forma de nossas próprias inclinações.(...) A pessoa não julga que tem a inclinação a descobrir a respeito das coisas e depois infere que o conhecimento é um bem a ser buscado. Pelo contrário, por meio de um simples ato de entendimento não-inferencial, a pessoa apreende que o objeto da inclinação que ela experiência é um caso particular de uma forma geral de bem, para si mesmo (e outros como ela).´´(FINNIS,p.44-45).
Parece, portanto, que a crítica de Hume ao jusnaturalismo só é
valida no caso de Jusnaturalismos de raiz moderna, como o da Escola de Direito Natural do
séc. XVIII, que a partir de descrições da natureza dos homens e animais em
geral, deduziam a nível de frequência de tais atos uma lei natural. E desses postulados descritivos acerca da natureza humana, se poderia deduzir a mos geometricus todas as conclusões possíveis do Direito. É esta a característica central desse jusnaturalismo racionalista. E dessa forma, a crítica de Hume não atinge a Tradição Clássica do Jusnaturalismo de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.