No livro de Helena
Lubienska de Lenval, A Educação do Homem Consciente (KIRION, 2018), temos uma exposição
completa não apenas de pedagogia, mas, transcendendo esta, entra nos mais
relevantes temas de antropologia filosófica enquanto esta diz respeito à
educação.
|
Helena Lubienka de Lenval (1895-1972) |
Toda educação tem um
objetivo, e cada pedagogia que se formula tem ao menos subjacente à ela alguns
pressupostos antropológicos que determinam algumas respostas. Qual é o fim da
educação? Quais os métodos a serem usados na educação? Essas perguntas poderiam
ser respondidas com várias respostas diferentes e divergentes entre si. Por
exemplo, se poderia dizer que o fim da educação é fornecer ao ser humano alguma
utilidade social em seu ambiente, e os métodos serão simplesmente fornecer
meios adequados para que seja útil, e neste caso, temos pressuposta toda uma
ética social de matriz utilitarista. Em suma, toda educação tem de ter um ponto
de partida para que se possa desenvolver o homem, tem de responder quem é o homem e quais são
seus fins, e dessa resposta há de depender todos os desenvolvimentos
posteriores.
No caso de Lubienska, o
ponto de partida de sua pedagogia é a afirmação de que o fim de toda a educação
é estabelecer no homem a primazia do espirito. Contrariamente às pedagogias
utilitaristas e materialistas, o educador que tem por objetivo a primazia do
espirito
“Não
pode, portanto, deter-se nos resultados imediatos, materiais e intelectuais.
Seu objetivo é fazer de seus alunos seres conscientes, isto é, responsáveis.Sua
tarefa é desenvolver a consciência. Sim, quer se trate de habilidade manual ou
de vida prática, quer de cultura ou de vida intelectual, todo o esforço deve
levar a um desenvolvimento da consciência. E para esse fim, tudo lhe será bom,
tanto o mais humilde exercício de marcha como a mais difícil especulação
matemática. ” (LUBIENSKA, 2018, p.29)
Aqui temos de um
ponto de partida antropológico. Se compreendemos que o ser humano, além de sua
evidente dimensão corporal, possui uma dimensão espiritual, cujas operações
transcendem à capacidade material e elevam o ser humano de uma maneira
singular, esta dimensão possui uma certa primazia – que não exclui a dimensão
corporal, mas a ordena à espiritual, como o imperfeito se ordena ao perfeito.
Esta compreensão do ser humano foi também bem exposta por S. Tomás de Aquino (1225-1274)–
que parece ser um bom complemento e aperfeiçoamento para a antropologia que
Lubienska formula - , que em seu Tratado do Homem, explica que a dimensão
anímica do homem esta substancialmente unida a sua dimensão corporal: a alma é
forma do corpo, dá o ser ao corpo (ato de ser), informa-o na sua estrutura
íntima e de certa forma depende dele para que forneça dados sensíveis para o
conhecer (nada no intelecto que antes não tenha estado nos sentidos). Assim, a
dimensão corpórea não é um simples instrumento acidental da alma, mas sim
substancialmente unido à ela, de tal forma que só se diz ser pessoa o ser
humano completo, alma e corpo; a pessoa não é uma alma, um self, uma
consciência “presa” dentro de um corpo, mas ela de certa forma é este corpo.
Desta união
substancial, essencial, entre as dimensões anímicas e corpóreas, podemos
concluir que não basta que sejamos intelectualmente educados apenas, tampouco
apenas corporalmente, mas é preciso que sejamos educados de forma integral, em
todos os aspectos da realidade humana – corporal, intelectual e espiritual -,
sem reduzi-la a nenhum de seus aspectos particulares. É necessário ter em mente
um principio que Martine Gilsoul, estudiosa de Lubienska, chamou de Princípio
da Coesão, isto é, “a pedagogia deve reunir e realizar imperativamente a
unidade completa da personalidade, que só pode ser alcançada através do
trabalho de desenvolvimento simultâneo da vida corporal, psíquica e espiritual.” (GILSOUL, in LUBIENSKA, 2018, p. 17)
É preciso que todas as
atividades, portanto, visem o estabelecimento no homem da primazia do espírito,
isto é, de alguma forma sejam ordenadas a isto. Assim, a atividade corporal
serve ao espírito e a atividade psíquica também pode faze-lo. Vejamos de que
forma isto se dá principalmente na educação infantil, área na qual Lubienska
tornou-se célebre.
A primeira conclusão
que se impõe é de que a nossa educação corporal, motora, muscular, pode servir
e se ordenar para o cultivo da inteligência. E para a criança, esta conclusão é
ainda mais expressiva: uma vez que esta não é ainda capaz – nos primeiros
estágios de desenvolvimento – de formular palavras e frases que expressariam
seu mundo interior, expressa pelos gestos e movimentos a sua interioridade; por
essa razão, nestes estágios, a vida do intelecto necessita da atividade motora
para se desenvolver, e a atividade cerebral e muscular são indissociáveis.
|
Dra. Maria Montessori (1870-1952) |
Maria Montessori –
grande fonte de inspiração para Lubienska -, ao dizer que “ a criança
compreende mexendo-se” (apud LUBIENSKA, 2018, p. 37), faz uma crítica firme às
pedagogias do que ela chama de Nova Escola, que acaba por dissociar a atividade
intelectual e a atividade física em disciplinas diferentes, como se fossem
compartimentos que não se comunicam, o que acaba por gerar desinteresse na
criança. A educação será tão mais completa quanto mais capaz for de integrar
todos os aspectos da realidade humana – corporal, intelectual e espiritual -,
com vistas a um fim e principio específico: a primazia do espirito, na formação
de pessoas conscientes e responsáveis.
A criança precisa, na
sua educação motora, ter domínio de si e consciência dos outros. Lubienska,
seguindo o método montessoriano, sugere para esta educação alguns exercícios de
marcha, de dança e de mímica, que auxiliam a conseguir consciência corporal, e
que permite que controle e dominem a si mesmas. Além dessa educação e domínio
motor de si mesmo, é preciso ensinar a criança a ter consciência dos outros,
que são
“todos
aqueles que, de perto ou de longe, nos rodeiam. Devemos aprender a pensar
neles, a nos incomodarmos por eles: mesmo quando não os vemos, quando nos são
desconhecidos. Praticaremos assim uma polidez universal e desinteressada, que
será uma tradução prática do mandamento da caridade. De fato, como atualizar a
nossa boa vontade de amar os homens, senão, primeiramente, não os perturbando?”
(LUBIENSKA, 2018, p. 41)
Aprender a andar sem
fazer ruído, a saudar uma pessoa, a fazer atividades úteis para os outros, tudo
isso além de formar a criança na sua mobilidade, já é de alguma forma um
preâmbulo para a educação moral. E mais: até mesmo para a educação religiosa,
porque o sentido de respeito é fundamental para compreender sentido de sagrado,
para preparar o comportamento da criança para participar da missa, do respeito
e reverencia que deve ter ao entrar na Igreja, etc. Dessa forma, essa atitude
de reverencia para com os outros, é como que uma antecipação para as virtudes
morais que serão amadurecidas posteriormente:
“Incomodar-se
pelos outros é manifestar respeito por seu trabalho, seu repouso, seu
pensamento e seu sofrimento. Dominar-se em atença aos outros é colocar em
prática a boa vontade de ama-los, antes mesmo de a formular; é preparar o molde
em que mais tarde tomará forma a virtude. Por isso, nada há mais tocante do que
ver os esforços de uma consciência, apenas desabrochada à luz, que luta por
manobrar um corpo inepto, de maneira a não incomodar os outros, praticando
assim, talvez sem se dar conta, a mais autentica caridade.” (LUBIENSKA, 2018,
p. 44)
Em segundo lugar, a atividade psíquica tem de estar
a serviço do espírito. E para isto, é preciso ordenar o caos e a pluralidade de
dados que chegam aos sentidos e à inteligência, para que possam servir para o
desenvolvimento do homem consciente. É necessária, portanto, uma educação
sensorial, que saiba ordenar, classificar, distinguir as diversas experiências
que se apresentam; é preciso desenvolver essa educação para a inteligência
matemática, que há de aprender a distinguir, comparar e medir, e os métodos
para isto, quanto mais ativos, mais sensíveis, melhor serão para a criança, e por
isso, cubos, barras, e semelhantes são a melhor forma de despertar o gosto na
criança por essas atividades. Para ensinar as palavras, a autora ensina que
“Urge fazer as crianças
compreenderem que o modo indica uma maneira de ser, de sentir, digamos um
estado de alma, representável por meio do gesto. Não consideramos os tempos que
se referem à duração; fixamos a atenção no aspecto psicológico do verbo, que se
traduz nos modos.” (LUBIENSKA, 2018, p. 88, grifo nosso)
E continua, dizendo que “[a]ssimiladas desse modo
pela reflexão,as formas gramaticais impõe-se como uma necessidade psicológica e
já não se apresentam como um conjunto de regras arbitrárias inventadas pelos
adultos para aborrecer as crianças.” (LUBIENSKA, 2018, p. 89)
E por fim, um dos pontos importantes para a
pedagogia de Maria Montessori – mestra de Lubienska -, é a importância do
silencio. De cultivar na criança a capacidade de silenciar, de recolher-se, de
dominar a si mesma para saber silenciar nos devidos momentos. Este exercício,
mais do que uma atividade passiva, de simplesmente ausência de som, pressupõe,
pelo contrario, um grande esforço de concentração, de controle motor e
intelectual, que é condição para qualquer desenvolvimento e aprendizado
intelectual posterior; e por isso, se diz que o progresso da criança se mede
pelo progresso da capacidade de silenciar. E essa atividade de silencio, muito
ao contrário de oprimir as disposições ativas da criança e cercear sua
liberdade, dá uma liberdade maior para ela, uma vez que a torna consciente e a
ajuda em seu desenvolvimento; por isso, a autora contrapõe-se firmemente a esta
crítica:
“Muitas vezes faz-se uma ideia falsa da liberdade e inculcam-na às crianças: a liberdade seria a ausência de constrangimento; uma atividade desregrada, sem freio nem finalidade. Para crianças cravadas em bancos, obrigadas a sofrer passivamente uma onda de palavras, liberdade significa o direito de correr gritando. Ideia puramente negativa, reação violenta contra um atentado crônico à liberdade. Porque a liberdade essencial, indispensável ao homem é a de se mover, agir e pensar segundo o próprio ritmo individual.
A disciplina não é oposta à liberdade, mas solidária com ela.O homem só é livre na medida em que é disciplinado. Considerai o dançarino, como salta no espaço; o pianista, como seus dedos voam sobre o teclado; o nadador, como desafia as profundezas do mar. Para se tornar livre, o homem deve disciplinar-se: ‘minha alma esta sempre nas minhas mãos’, dizia o salmista.
Em linguagem pedagógica, traduzimos: minha atividade é sempre dirigida por minha vontade consciente. Respeitar a liberdade da criança é ajuda-la a disciplinar-se; é fazer-se aliado de sua energia centrípeta contra suas energias centrifugas; é guia-la para o cumprimento do seu destino de homem consciente e responsável.” (LUBIENSKA, 2018, p. 97)
Podemos considerar também, em próximas reflexões, a maneira como Lubienska aplica esses princípios na formação religiosa da criança. Neste quesito, a autora é uma das mais importantes defensoras da liturgia como método pedagógico por excelência, e por isso, a pedagogia de matriz católica tem muito a aprender com ela.